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Direitos de Acesso a obras intelectuais de pessoas com deficiência no Brasil

Com a aprovação do Tratado de Marraqueche que facilita o acesso às obras intelectuais publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para aceder ao texto impresso, inúmeras questões têm surgido sobre se há necessidade de autorização dos titulares dos direitos autorais de livros para adaptação de seus conteúdos à leitura, compreensão ou utilização de suas obras por pessoas com deficiências auditivas ou visuais (exemplos mais comuns são obras em Braille, Daisy ou áudio book).

Rodrigo Vieira[1]

Com a aprovação do Tratado de Marraqueche que facilita o acesso às obras intelectuais publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para aceder ao texto impresso, inúmeras questões têm surgido sobre se há necessidade de autorização dos titulares dos direitos autorais de livros para adaptação de seus conteúdos à leitura, compreensão ou utilização de suas obras por pessoas com deficiências auditivas ou visuais (exemplos mais comuns são obras em Braille, Daisy ou áudio book).

Por razões atinentes à segurança jurídica dos beneficiários, dos autores e dos editores, alguns contratos e licenças prevêem de antemão a autorização para adaptação de conteúdos às pessoas com deficiência visual, desde que não alterem ou modifiquem o sentido original da obra intelectual, ou atinjam os titulares em sua imagem ou honra. Mas há necessidade de incluir cláusula expressa de autorização nesses termos? Ou mesmo de qualquer tipo de autorização?

Percebe-se que a questão central cinge-se sobre a possibilidade de adaptação de obra intelectual para uso adequado às necessidades de deficientes auditivos e visuais. A inserção do dispositivo em termos contratuais permitiria que entidades autorizadas procedessem às adaptações já previamente com a anuência do autor ou dos editores.

Centra-se, portanto, no equilíbrio de direitos fundamentais. Se por um lado o criador detém os direitos exclusivos originários inerentes à condição da autoria de usar, gozar, fruir e dispor da obra fruto de sua atividade intelectual, seja qual for a dimensão da vida humana relacionada ao ato criativo, de outro, grupos vulneráveis, ou em situação de vulnerabilidade, como as pessoas com deficiência, por imperativos de igualdade material e não-discriminação, são titulares dos direitos de acesso à educação, à cultura e à informação, cujos exercícios dependem essencialmente da criação das condições de acessibilidade.

Em regra, as adaptações são transformações operadas em obras de outrem que resultam em uma nova, esta última constitui-se naquilo que se denomina obra derivada, cuja definição encontra-se no artigo 5º, inciso VIII, alínea “g”, da Lei de Direitos Autorais brasileira. Como toda transformação, é indispensável a autorização do autor, de acordo com as tenazes do artigo 29, inciso III, do referido diploma normativo. Para Plínio Cabral (Direito Autoral: dúvidas e controvérsias. 2. ed. São Paulo: Harbra, 2000, p. 85):

Não há dúvida, portanto: a utilização da obra, seja de que forma for, depende da autorização ‘prévia e expressa do autor’, cujos privilégios legais não se alteram nem desaparecem em face dos meios utilizados para sua reprodução ou adaptação.

Contudo, toda regra geral em direito possui exceções oriundas do próprio ordenamento jurídico, expressas ou implícitas, decorrentes da interpretação sistemática das normas que o compõem, ou mesmo da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade – quando diante do choque de direitos fundamentais – a fim de equilibrar os direitos e bens jurídicos em questão em um conflito concreto.

A própria Lei de Direitos Autorais traz em si limitações e exceções às prerrogativas exclusivas dos autores e dos titulares de direitos autorais e conexos. Além do domínio público, o artigo 46 enuncia expressamente as hipóteses em que a norma atribui a terceiros a livre utilização de obras protegidas sem a necessidade de autorização do autor, dentre as quais se inclui a reprodução de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários.

A Lei de Direitos Autorais atendeu nada mais do que reclame oriundo dos deficientes visuais para que os custos de reprodução de obras não fossem empecilho para acessá-las tendo em vista sua funcionalidade para gozo de direitos como o a educação.

Afinal, a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, dentre outras providências, estipula como competência do Poder Público o assecuramento às pessoas com deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

No mesmo diploma, na área da educação, há previsão de medidas que favoreçam a inclusão no sistema educacional e o acesso a material escolar (artigo 2º, inciso I, alíneas “a” e “e”. O Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta esta lei, reafirma, em seu artigo 24, inciso VI, a necessidade de viabilização, por parte da Administração Pública Federal, as condições de acessibilidade aos benefícios dos demais educandos, sendo obrigação, segundo artigo 29, inciso I, das instituições de ensino, adaptação dos recursos instrucionais: material pedagógico, equipamento e currículo.

Nesse mesmo sentido, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova Iorque de 2007, aprovada, por meio do Decreto- Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, reconhecendo que para possibilitá-las o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais é essencial o reconhecimento da acessibilidade à educação, criou obrigações aos Estados Partes, inclusive em matéria educacional.

Conforme consta na norma internacional, internalizada em nosso ordenamento jurídico, especificamente no artigo 24, item 2, alíneas “c”, “d” e “e”, para realização do direito à educação, os signatários, dentre eles o Brasil, assegurarão que adaptações razoáveis sejam providenciadas de acordo com as necessidades individuais; que as pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e que medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.

Contudo, mesmo uma medida de natureza afirmativa não pode igualmente ser implementada ao arrepio de outro bem jurídico fundamental também relevante, inclusive para desenvolvimento da educação e da cultura, isto é, os direitos autorais. Tanto que recentemente, em junho deste ano, a partir iniciativa copatrocinada por Brasil, Paraguai, Equador, Argentina e México, apoiada pelo Grupo de países da América Latina e do Caribe, foi celebrado o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou outras Deficiências para o Acesso ao Texto Impresso, a fim de manter um equilíbrio entre a proteção eficaz dos direitos dos autores e o interesse público em geral, particularmente em termos de educação, pesquisa e acesso à informação, e que esse equilíbrio deve ser mais fácil para as pessoas com deficiência visual ou outras dificuldades para acessar o texto impresso real e acesso em tempo útil aos trabalhos.

O texto do Tratado, o primeiro multilateral a tratar de limitações e exceções aos direitos de propriedade intelectual, declara que os Estados Partes são conscientes dos desafios prejudiciais para o desenvolvimento das pessoas com deficiência visual ou outras dificuldades para acessar o texto impresso, o que limita a sua liberdade de expressão, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de todos os tipos em um condições de igualdade com os outros, através de todas as formas de comunicação de sua escolha, e sua fruição do direito à educação, bem como a oportunidade de realizar pesquisas. Seu objetivo é alinhar as limitações e exceções para facilitar o acesso e utilização das obras por pessoas com deficiência visual ou outras dificuldades para acessar textos impressos.

Não à toa que sua feitura fora encabeçada por países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos, pois o maior número de deficientes visuais do globo encontra-se nessas regiões. Contudo, reconhece o Tratado que apesar de muitos Estados-Membros estabeleceram as exceções e limitações de direitos autorais mediante leis nacionais voltadas para pessoas com deficiência visual ou outras dificuldades de acesso ao texto impresso, elas por si só são insuficientes para pôr em disponibilidade obras intelectuais acessíveis a essas pessoas.

No Brasil, o texto do artigo 46 da LDA, assim como o do Tratado, tem como destinatários apenas deficientes visuais, não adentra na seara da resolução de problemas em relação ao acesso de pessoas com deficiências auditivas. A Lei de Direitos Autorais prevê restritivamente o uso exclusivo apenas em face de reprodução da obra intelectual, sem fins comerciais, feita mediante o sistema Braille ou equivalente. Infelizmente, o Tratado de Marraqueche ainda não adentrou no sistema jurídico interno brasileiro, pois terá a vantagem de permitir que entidades autorizadas, sem anuência dos titulares dos direitos de autor, possam adequar uma obra a um formato destinado às pessoas com deficiência visual.

Embora não esteja suficientemente claro na atual LDA que adaptações a deficientes visuais, quanto mais às pessoas com deficiência auditiva, constituem limitações, não é necessário que conste a autorização expressa do titular para tal fim. Tendo em vista os princípios da não-discriminação, da igualdade de oportunidades, da acessibilidade e da participação e inclusão plena e efetiva na sociedade desses grupos vulneráveis, é imperioso que esta possibilidade seja observada por autores e editores, respeitados seus direitos morais.

Por prevenção e precaução, – apesar de a princípio não se vislumbrar nenhuma ofensa ou violação a direitos morais no ato de adaptar obras a pessoas com deficiência, – como a adaptação ao público deficiente pode implicar na alteração da obra, envolvendo direitos morais dos titulares à integridade e à modificabilidade de suas criações (artigo 24, inciso IV e V, da Lei de Direitos Autorais), sugere-se que, no presente e em um futuro próximo, seja uma prática recorrente em licenças, contratos e termos de cessão, inclusive com entidades que realizem leituras adaptadas ou trabalhem com acesso à informação a deficientes, a inserção de cláusula permitindo modificações na obra para leitura, compreensão e uso dessas pessoas, com a ressalva do respeito ao seu conteúdo e sentido original.

 


[1] Doutorando em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Prof. de Direito Público da Universidade Federal do Semi-Árido no Rio Grande do Norte – UFERSA – Campus Mossoró, Pesquisador do GEDAI UFPR