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A incidência dos direitos autorais no grafite e suas implicações legais

Bibiana Biscaia Virtuoso • Giovana Tortato Poleza • Rodrigo José Serbena Glasmeyer

Na última década, nada impactou mais o mundo das artes do que a expansão do reconhecimento do valor artístico do grafite. Da venda de um grafite de Jean-Michel Basquiat por 110 milhões de dólares, em 2017, até as diversas enormes exposições sobre o estilo nos mais variados e prestigiados museus do mundo, é impossível negar que a importância cultural e de forma de expressão deste ramo da arte que se popularizou com os “writers” pintando suas tags garrafais na Nova Iorque da década de 80 agora se capitaliza e se transforma, também, em matéria de importância patrimonial.

1. DA PROTEÇÃO DO GRAFITI

Do surgimento desta nova face do grafite, porém, surge a necessidade do esclarecimento de algumas questões legais que envolvem o tema, e além da pauta já discutida acerca da dimensão transgressora do movimento, é necessário que o direito se adeque à realidade material do mundo da arte atual, compreendendo que o fato de a fixação material das obras de grafite se dar em espaços públicos e em cima da propriedade privada alheia sem necessária autorização não deve retirar em todo a incidência de direitos autorais acerca da obra.

Compreendendo as obras de grafite como obras originais criativas, fixadas em meio tangível, e também compreendendo a possibilidade de desenvolvimento cultural e de inclusão trazida por uma visão mais amigável ao grafite, acreditando também na proposição de que a segurança jurídica ao grafiteiro legal motivará um movimento de consolidação dos grafites e murais autorizados e, consequentemente, mais complexos e mais bem trabalhados, analisamos a natureza jurídica dos direitos de autor em cima da modalidade, espelhando o artigo PROTECTING ARTISTIC VANDALISM: GRAFFITI AND COPYRIGHT LAW, de Celia Lerman.

De início, é preciso compreender o grafite enquanto manifestação artística, e os pré-requisitos que o caracterizam como tal. Nisso, são abordados Spray-Paint Graffiti, Street Art e Stencil, que alcançam públicos distintos e maneiras diversas de manifestar a arte. Mas não basta classificarmos as grafitagens nestes moldes e a partir disso discutirmos a incidência de direitos autorais; é importante ressaltar a originalidade das obras, como produção do trabalho do artista. A possibilidade de direitos autorais se faz na medida em que o grafite não se restrinja a frases dispersas ou símbolos usuais e comuns, mas em uma obra artística original do sujeito que a criou, mesmo que tenha se alterado pelo ciclo artístico. Ainda que por vezes ilegal, situando-se em ambientes privados, existe a incidência da autoria sobre a obra, cabendo a sanção e a punibilidade não à expressão artística, mas à materialidade em que se encaixa. A originalidade da obra continua existindo.

2. VANDALISMO OU ARTE: LIMITES NA PROTEÇÃO DA OBRA

Na mesma medida, os direitos autorais que protegem a obra do artista urbano não incidem sobre o aspecto material em que está expressa, como a parede em si, mas sim a criação, ainda que ela venha a ser alterada com o tempo ou por novas manifestações. Isso é muito importante porque muitas vezes as grafitagens são inseridas em ambientes urbanos e abertos, sujeitos à deterioração pela falta de cuidados ou mesmo pela alteração por novas obras que venham a ser colocadas sobre. Um exemplo disso é a forma como era disposta a dinâmica de obras criadas na 5 Pointz, em Nova York, em que haviam os espaços para obras criadas por artistas renomados, que adquiriam caráter permanente, e as zonas designadas para criação e dinamicidade, onde novos artistas podiam se dedicar, com caráter periódico. Para que essas artes que acabam não possuindo caráter definitivo, pelo próprio caráter do meio artístico, não fossem juridicamente prejudicadas, o direito autoral se dispôs de maneira a proteger sempre a primeira obra, a base do artista, mesmo que viesse a ser modificada. Assim, compreende-se que a propriedade intelectual que circunda a manifestação artística se dissocia do meio material em que é expressa, de forma que o copyright e o grafite são de propriedade do autor, e não do possível dono da parede em que foi feito.

Aqui, encontramos uma problemática. Por muitas vezes, o grafite é uma atividade ilegal, por manifestar-se em propriedades privadas da zona urbana, e pela ideia de “ex turpi causa non oritur actio”, ninguém deve se beneficiar da quebra da lei. Mas então, como proteger a propriedade intelectual que incide sobre essas manifestações, se elas surgem de uma ilegalidade? É justamente nisso que cabe a dissociação entre a intelectualidade e o meio material em que se propaga. Enquanto a propriedade intelectual é protegida pelo direito autoral, o direito civil aborda as sanções atribuídas à patrimonialidade corrompida. À espelho da lei americana, que inovou nas abordagens

acerca deste meio de manifestação artística, à exemplo da decisão da corte acerca do caso emblemático ressaltado pela 5 Pointz, a lei brasileira nº 9.610/98, em seu Capítulo I, título II, artigo 7º, dispõe que "São obras de direitos intelectuais protegidas as criações de espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro (…)”.

A lei americana possui grande representatividade neste aspecto, salientando que o direito autoral sobre o que tange a obra tem como requisito sua originalidade, e nada dispõe acerca da legalidade do meio material em que se enquadra. Ou seja, a obra só não pode ser cópia de outrem ou composta de elementos generalizados que descaracterizam a generalidade. Sobre isso, ressalta-se a decisão proferida pela corte americana, especificamente proferida pelo juiz Block, em fevereiro de 2017, acerca do caso da 5 Pointz, que era um espaço de criação artística deste cunho, apesar de patrimônio particular.

Em 1990, os Estados Unidos instituíram a VARA (Visual Artistic Rights Act), como desdobramento da Convenção de Berna, ratificada por países como o Brasil, versando sobre o tema de direitos autorais. Este dispositivo legal deu suporte à ações como a sustentada pelo grupo de artistas afetados com a ameaça de demolição do prédio que subsidiava o espaço 5 Pointz, como o ato de pintura das paredes sobre as obras. O dono do edifício, Wolkoff, tinha a pretensão de demoli-lo para a construção de outro complexo imobiliário, e pintou parte das paredes, prejudicando um grande percentual de obras artísticas. Inconformados, grafiteiros entraram com a ação, que tramitou no embate acerca dos direitos autorais x espaço privado pertencente a Wolkoff. No fim das contas, a sentença condenou o proprietário à indenização de US$ 150 mil por cada obra prejudicada, e significou um marco no que tange à dinamicidade, periodicidade e materialidade das artes relativas à grafitagem.

Entretanto, ainda que não se perceba tal “cláusula de ilegalidade” nas leis americana e brasileira, nota-se tal distinção em outras legislações, como a Convenção de Paris para a Proteção de Propriedade Intelectual, que limita a proteção às obras adequadas à moralidade e ordem pública. Entretanto, ainda que o Brasil seja signatário da Convenção, isso não significa que a disposição de ilegalidade se estenda à legislação brasileira; isso porque fica nítida a opção de não inclusão à normatividade nacional de tal disposição, na medida em que, mesmo que existente na Convenção, não se coloca na lei interna. Não faria sentido incluir cláusulas desta natureza em uma legislação que

pretende incentivar a produção cultural. Apesar disso, segundo apontado pelo site Artsy, o sistema europeu sustenta a base dos direitos autorais segundo uma perspectiva de que as obras são uma extensão dos próprios artistas, e por isso devem ser protegidos; nota-se um direito de caráter mais humanístico.

O conflito sobre o qual recai a proteção da propriedade intelectual sobre as grafitagens para com a ideia de vandalismo se fez concretamente presente no caso de José Carlos Martinat, em Buenos Aires. Martinat, com um removedor específico, retirou parte das obras das paredes e expôs os recortes à venda em uma galeria de arte, em um ato de “vandalismo contra vandalismo”. A proposta colocada em pauta era justamente explicitar, por meio do recorte das mais diversas obras deste cunho, o contraponto entre a criação artística e a percepção de vandalismo por de trás da ilegalidade material em que se propaga. Irresignados, parte dos artistas destruíram suas próprias obras na estreia da exposição, e iniciou-se o movimento “La Pared No Se Vende”.

Percebe-se aqui, o quão tênue acaba sendo a percepção entre vandalismo e a manifestação artística por meio das criações urbanas, e para isso cabe compreender que, antes de tudo, a extensão dos direitos autorais se faz na medida em que protege a originalidade da obra, sem necessariamente atribuir a ela um valor ou utilidade social que não sua própria promoção. A tutela jurídica, nesse sentido, não busca proteger a ilegalidade ou a concepção de vandalismo permeada por ela, mas a criação artística em todas as suas facetas.

A proteção do direito autoral sobre o grafite, nesse sentido, incentiva o artista a efetuar sua obra na extensão do dispositivo legal, uma vez que a ilegalidade coloca a elaboração artística sob uma perspectiva marginal e impossibilita a criação de obras mais elaboradas e complexas. Nesse mesmo caminho, segue a compreensão do sistema americano de direitos autorais, na medida em "é estruturado em torno da ideia de que esses direitos servem como um incentivo econômico para que os artistas criem arte e a compartilhem com o público", como aponta artigo do Site Artsy. O cunho econômico, portanto, incentivaria o artista a produzir em contextos nos quais possa gozar da proteção legal, como aborda o artigo “Protecting Artistic Vandalism: Graffiti and Copyright Law”. Isso não significa dizer que seriam extintas as manifestações sob o fulcro do vandalismo, mas que seriam possíveis as produções de grafite em projetos de incentivo e almejo cultural. Ainda, tendo por referência artigo desenvolvido pela professora Angela Costadello e Francisco Bley, nota-se que essa extensão protetiva ampliaria o alcance em políticas de inclusão.

3. O GRAFITI NO BRASIL

No Brasil, o grafite assume posição de grande importância na extensão da manifestação artística urbana, como extensão da realidade social, política e cultural. Já desde a década de 70, era notória a relevância da grafitagem como voz do brasileiro, como ato político. Em tempos de criminalização do artista de rua, surgia em São Paulo a manifestação da liberdade de expressão por Alex Vallauri, tendo por referência obras como “Boca com Alfinete”, de 1973. Em 2017, insurgiu a proposta de um “grafitódromo” na cidade de São Paulo, para abrigar exposições das mais diversas de grafites, para a livre criação, como incentivo da Secretaria da Cultura de São Paulo. A ideia foi

inspirada em Wynwood, de Miami, que abriga painéis e ilustrações. A proposta gerou conflitos entre os artistas, que querem preservar seus direitos de expressar-se livremente, principalmente tendo em vista que o grafite, como arte, tem por essência a interação com a cidade e a realidade em que está inserido. Rui Amaral, autor do primeiro grafite pintado à mão, em 1982, contrapôs a medida governamental dizendo que “O mundo é que olha para nós. São Paulo sempre foi a capital do grafite mundial”.

Aqui, novamente, percebe-se a distinção entre a manifestação artística e a concepção de vandalismo, em interação com a gestão pública.

A reportagem da BBC “Do crime a arte: a história do grafite nas ruas de São Paulo”, aborda justamente este trâmite conflituoso entre políticas públicas e criação da arte urbana. Segundo o sociólogo Alexandre Barbosa Pereira, pesquisador de Antropologia Urbana da Unifesp, é a partir da distinção entre pichação e grafite que começa a existir maior aceitação do grafite como arte, mas somente em contraponto com a ideia vândala de pichação. Entretanto, como já foi apontado, o grafite se manifesta das mais diversas formas, e por muitas vezes a concepção de “Spray-paint Graffiti”, acaba sendo compreendida por pichação, o que problematiza ainda mais a abordagem de ilegalidade.

REFERÊNCIAS

COSTALDELLO, Angela Cassia, BLEY, Francisco. A regulamentação legal do grafite: perspectivas e caminhos a partir de uma experiência prática em Curitiba, 2017

FABIO, Cabette André. Por que a punição da corte americana contra quem apagou grafite é um marco. Fevereiro, 14, 2018. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/14/Por-que-a-puni%C3%A7%C3%A3o-da-corte-americana-contra-quem-apagou-grafite-%C3%A9-um-marco

LERMAN, Celia. Protecting artistic vandalism: Graffiti and Copyright Law. April, 22, 2013. JIPEL, VOL. 2 – Nº2. https://jipel.law.nyu.edu/vol-2-no-2-2-lerman/

MODELLI, Lais. De crime a arte: a história do grafite nas ruas de São Paulo. Janeiro, 28, 2017. BBC Brasil. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/14/Por-que-a-puni%C3%A7%C3%A3o-da-corte-americana-contra-quem-apagou-grafite-%C3%A9-um-marco