Podemos falar em demarcação dos direitos autorais indígenas no Brasil?

Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo

Advogada e Oficial de Chancelaria. 
Pesquisadora sênior no GEDAI/UFPR. 
Especialista em Gestão de Arte e em Capitação de Recursos pela Universidade de Boston. 
Especialista em Museus, Galerias e Acervos pela Universidade Positivo. 
Especialista em Negociações Econômicas Internacionais pelo Programa Santiago Dantas (PUC-SP/Unicamp/Unesp). 
Estudante do programa de MBA em Propriedade Intelectual, Direito e Arte da UCAM. 
Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR e da ABPI. 
Foi Vice Cônsul, chefe do setor cultural e educacional do Consulado-Geral do Brasil em Boston. 

Introdução

É comum entender a arte indígena como sendo derivada de um conhecimento tradicional de autoria coletiva, tangível ou intangível, transmitido entre gerações, por meio da oralidade ou da imitação. A essa modalidade artística a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) convencionou chamar de “expressões culturais tradicionais – ECTs”, as quais são objeto de reflexão acerca da melhor forma de protegê-las [1]. 

Esse conceito apresenta desafios à proteção das legislações de direito autoral influenciadas pela Convenção de Berna de 1886, entre elas a brasileira, de caráter individualista e materialista. 

Atualmente, há um novo tipo de arte indígena em discussão. Ela vem ocupando museus e exposições brasileiros, como a Pinacoteca, o CCBB e o MAM em São Paulo, o Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense e outros espaços no Brasil. Trata-se da “arte indígena contemporânea – AIC”, movimento assim batizado pelo artista macuxi Jaider Esbell [2]. 

A AIC é uma tentativa de recordar o caráter dinâmico das expressões culturais tradicionais e vem trazendo elementos que podem sugerir a demarcação dos direitos autorais indígenas no Brasil. 

Antes de tratar da AIC, vale recordar que as ECTs compreendem manifestações artísticas diversas realizadas por povos tradicionais, incluídos os indígenas, como pinturas, esculturas, músicas, performance, danças, histórias contadas, sem prejuízos de outras formas de expressão [3]. Por estarem inseridas no domínio das artes e da cultura, questiona-se se elas poderiam ser objeto de proteção autoral. 

A arte indígena o direito brasileiro 

A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9.610 de 1998 – LDA) estabelece critérios para a proteção de obras criativas, como a necessidade de autoria individualizável, fixação em meio tangível ou intangível e momento definido de seu surgimento. 

A literatura acerca da propriedade intelectual aponta para a dificuldade de a LDA atender às ECTs, pois essas se caracterizam pela impessoalidade da autoria, atemporalidade da criação e, muitas vezes, por sua não fixação [4]. 

Não há um entendimento pacífico acerca da proteção intelectual das ECTs entre os países membros da OMPI. No que diz respeito ao Brasil, não há legislação específica sobre o tema, e a LDA entende que obras de autoria desconhecida ou cujo prazo de proteção tenha se exaurido seriam de domínio público. A mesma Lei, muito embora faça ressalvas para a proteção de conhecimentos étnicos e tradicionais, não especifica como essa proteção deve ocorrer (Art. 45, II). 

E por que considerar a proteção dos direitos autorais dos povos indígenas?

Conforme afirma a OMPI, as ECTs “são parte integral da cultura e da identidade social dos indígenas e das comunidades locais, compreendem modos de fazer e habilidades, e transmitem seus valores centrais e suas crenças”. A proteção das ECTs “relaciona-se à promoção da criatividade, contribui para a diversidade e a preservação do patrimônio cultural”[5].   

Os fundamentos jurídicos para a proteção dos direitos autorais estariam incluídos entre os direitos individuais e os direitos sociais. De um lado, protegem-se a dignidade humana, a criatividade e a propriedade individual entendida como direitos fundamentais. Nesse sentido, garantem-se os direitos morais e patrimoniais do autor. De outro lado, protege-se a sociedade, na medida em que a retribuição autoral permite o fomento intelectual e em que, findo o monopólio limitado da proteção patrimonial, garante-se a socialização do conhecimento pelo domínio público do bem cultural [6].    

Conforme afirma o Prof. Humberto Cunha Filho, os direitos autorais enquadram-se entre os direitos culturais. Esses, por sua vez, têm relevância de direitos humanos, estando presentes em todas as suas gerações ou dimensões [7]. Os direitos individuais, civis e políticos, foram objeto da primeira geração dos direitos humanos, presentes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1979. Por sua vez, os direitos sociais, econômicos e culturais enquadram-se na segunda geração, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. No que diz respeito aos direitos dos povos indígenas, vale ainda enfatizar os direitos humanos de terceira geração, aqueles relacionados à diversidade, a autodeterminação dos povos e ao patrimônio comum, consolidados na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001.   

A Constituição Federal de 1988 explicitamente reconhece a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas (Art. 231) e informa ser dever do Estado garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, apoiando e incentivando “a valorização e a difusão das manifestações culturais” (Art 215, caput). 

Os bens, materiais e imateriais, referentes à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira são entendidos como patrimônio cultural do país (Art. 216). 

Ademais, o texto constitucional entende ser dever do Estado proteger as manifestações das culturas indígenas (Art. 215, § 1º). O reconhecimento dos direitos autorais dos povos indígenas seria, portanto, uma forma de atribuir valor à sua cultura, autonomia e dignidade humana, bem como forma de salvaguardar a diversidade e o patrimônio cultural brasileiro [8].   

Arte indígena contemporânea e direitos autorais

Mas e a arte indígena contemporânea (AIC)? No que ela difere das ECTs? E qual a possibilidade de ela ser protegida por direitos autorais?

Não há uma definição pacífica e uniforme sobre o conceito de AIC, mas esta é uma nomenclatura que vem sendo utilizada por artistas e curadores indígenas atualmente para sintetizar um movimento artístico diversificado em meios de produção e protagonizado por indígenas. 

A curadora Naine Terena associa a AIC a um discurso decolonial da história da arte [9]. O artista Denilson Baniwa critica a história da arte ocidental, eminentemente europeia e excludente [10].  Por sua vez, Jaider Esbell informa que a AIC se insere no sistema da arte, com visão própria, associada também à busca pelo direito à vida e à terra [11]. 

Vale mencionar que mesmo o conceito de arte não é pacífico, nem estático, e desenvolve-se conforme as práticas artísticas evoluem. 

O direito volta e meia se depara com a necessidade prática de definir o que é arte, como, por exemplo, nos julgamentos Brancusi vs. United States (em que se discutiu se a escultura de Brancusi era ou não uma obra de arte, para a incidência alfandegária) e Mazer vs. Stein (em que se discutiu se as estatuetas utilitárias de Stein eram ou não obras de arte, a fim de serem protegidas por direitos autorais). Será, pois, diante de um caso concreto, que os operadores do direito se posicionarão [12]. 

Para este artigo, importa compreender minimamente os elementos singulares da AIC que trazem a reflexão teórica sobre a sua proteção autoral. 

Trata-se de um movimento artístico recente, que inclui diversas modalidades de expressões criativas, realizadas por sujeitos indígenas, de modo individual ou coletivo, mas de autoria identificável, o que facilitaria a aplicação da legislação autoral brasileira existente. 

No entanto, a AIC também apresenta características artísticas das tradições indígenas. Não há ainda um caso contencioso nos tribunais brasileiros que possamos utilizar de referência. 

Importa perceber que os artistas indígenas contemporâneos estão situados entre um contexto cultural tradicional comunitário e a sociedade global. Ao mesmo tempo em que sua arte se utiliza de técnicas contemporâneas, como arte digital, meios audiovisuais, fotografia, ela traz elementos tradicionais, como padrões gráficos transmitidos intergeracionalmente, uso de recursos naturais, eventualmente elementos sagrados [13]. 

Essas últimas características aproximam a AIC do conceito de expressões culturais tradicionais. Considerar a proteção intelectual dessa modalidade artística implica em reconhecer essa natureza híbrida [14] . 

Conforme ensina Canclini, “frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico”. Um patrimônio, como “um conjunto de saberes e técnicas”, poderia ser reconvertido e “reinserido em novas condições de produção e de mercado” [15]. 

Haveria casos prósperos e não prósperos de hibridação, mas, segundo o autor, “este caminho talvez libere as práticas musicais, literárias e midiáticas da missão ‘folclórica’ de representar uma só identidade” [16]. 

No caso da AIC, será que a hibridação talvez possa sugerir um movimento emancipador do artista indígena como agente criador e sujeito de direitos autorais, segundo os limites de sua cultura?     

Conclui-se que a arte indígena contemporânea apresenta um discurso de afirmação política [17]. Assina-se a autoria indígena, protagonizada de modo individual ou coletivo, quando se refere a arte de determinada cultura tradicional. Requer-se à correção da narrativa da história da arte, por meio da inclusão da diversidade da arte indígena. 

Propõe-se um percurso decolonial de valorização da cultura dos povos nativos brasileiros. Verifica-se que há uma demanda de reconhecimento de direitos humanos e constitucionais, como a dignidade humana, o direito autoral, a diversidade e o acesso à cultura. 

Pode-se pensar, nesse sentido, que há um ativismo por uma demarcação também de direitos intelectuais. 

Na ausência de norma específica sobre a proteção intelectual das artes indígenas, talvez seja interessante pensar em uma interpretação sistemática da legislação brasileira, nela incluídos os tratados de direitos humanos mencionados e o texto constitucional, para garantir os direitos autorais dos povos indígenas. 

Referências bibliográficas

[1] WIPO. Traditional Cultural Expressions. Disponível em: https://www.wipo.int/tk/en/folklore/ Acesso em: 11 jul 2021. 

[2] TERENA, Naine. Véxoa: Nós Sabemos. Véxoa: Nós sabemos/Curadoria de Naine Terena. Textos Daniel Munduruku… [et al.]. – São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. 

[3] GOMIDE, Felipe Junqueira. A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2894, 4 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19271. Acesso em: 10 jul. 2021.

[4] DRUMMOND, Victor Gameiro. A tutela jurídica das expressões culturais tradicionais. São Paulo: Ed. Almedina, 2017.

[5] WIPO. Traditional Cultural Expressions. Disponível em: https://www.wipo.int/tk/en/folklore/ Acesso em: 11 jul 2021. 

[6] COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 3ª. Edição. Saraiva Jur.

[7] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. “Políticas públicas como instrumental de efetivação de direitos culturais.” Sequência, Florianópolis, n. 77, p. 177-196, set./dez. 2017. p. 182. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2017v38n77p177.> Acesso em: 20 jun 2021.

[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf> Acesso em: 25 jun 2021

[9] TERENA, Naine. Véxoa: Nós Sabemos. Véxoa: Nós sabemos/Curadoria de Naine Terena. Textos Daniel Munduruku… [et al.]. – São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. 

[10] GOLDSTEIN, I.S. Da “representação das sobras” à “reantropofagia”: povos indígenas e arte contemporânea no Brasil. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n. 3, p.68-96, set. 2019. Disponível em: ˂https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/mod/article/ view/4304˃. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v3i3.4304

[11] ESBELL, Jaider. “Arte indígena contemporânea e o grande mundo”, Revista Select. No. Edição 39. Publicado em 22/01/2018. Disponível em:<https://www.select.art.br/arte-indigena-contemporanea-e-o-grande-mundo/> Acesso em 26/06/2021.

[12] GERSTENBLITH, Patty. Art, culture heritage and the law: cases and material. 3ed. North Carolina: Carolina Academic Press, 2018.  

[13] TERENA, Naine. Véxoa: Nós Sabemos. Véxoa: Nós sabemos/Curadoria de Naine Terena. Textos Daniel Munduruku… [et al.]. – São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. 

[14] CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2008.

[15] Id. ibid. p. XXII.

[16] Id. ibid. p. XL. 

[17] ESBELL, Jaider. “Arte indígena contemporânea e o grande mundo”, Revista Select. No. Edição 39. Publicado em 22/01/2018. Disponível em:<https://www.select.art.br/arte-indigena-contemporanea-e-o-grande-mundo/> Acesso em 26/06/2021.

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