A preservação da memória (coletiva) e o direito à modificação: o caso Star Wars (1977)

BIBIANA BISCAIA VIRTUOSO
Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2020). Pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de dados no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Pesquisadora no Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR.

JARES DUARTE
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI UFPR

CONTEXTO

O impacto cultural do filme Star Wars (1977) é inegável. Vencedor de sete estatuetas do Oscar, abarcando nestas todas as categorias técnicas [1], o longa é um marco histórico para a indústria cinematográfica, cujo impacto ecoa até os dias de hoje, na era dos blockbusters de verão [2]. Apesar disso, a versão original da obra, contendo todos os efeitos visuais e inovações tecnológicas que a consagraram quando lançada nos anos 70, é hoje quase impossível de ser encontrada, em grande parte por desejo do próprio autor, o diretor George Lucas [3]. 

Ao longo das décadas que se sucederam ao lançamento, foram inúmeras as modificações que o autor fez à película original: desde a tímida aceleração do filme em 3% para se adequar às limitações do formato LaserDisc, até a adição de diversos novos cenários, personagens, enquadramentos e efeitos visuais e de áudio nas versões em VHS lançadas em 1997, denominadas de Especial Edition [4].

Irresignados com as mudanças, os fãs da saga demandam que seja disponibilizada a versão original do filme, sob o argumento de que tais mudanças o havia descaracterizado ao ponto de este não ser o mesmo que fez jus às premiações que recebeu quando de sua exibição nos cinemas. Após reiteradas negativas de Lucas e dos detentores dos direitos da obra para que isso acontecesse, uma iniciativa coletiva e independente realizou a restauração e corte de diversas mídias contendo a versão original de Star Wars (película 35mm, VHS, LaserDisc, entre outras) e reconstituiu, do modo mais fiel possível, o filme como teria sido lançado originalmente. O resultado final, denominado pelos criadores de “Despecialized Edition” (“Edição Desespecializada” (sic), em tradução livre), foi disponibilizado na internet para consumo, em situação de ilegalidade [5].

Nem mesmo os curadores do National Film Registry, responsáveis pela preservação de obras audiovisuais consideradas de grande valor histórico, cultural e estético, conseguiram a versão original do filme quando o listaram entre os 25 primeiros a fazer parte do acervo. O autor se recusou a ceder o filme, afirmando que não mais permitiria a publicação da versão original [6].

 

A MEMÓRIA COLETIVA FRENTE AOS DIREITOS MORAIS DO AUTOR

Entende-se como memória coletiva a relação perene entre passado e presente, aquilo que os grupos geracionais escolhem manter do passado em si [7]. A Constituição brasileira caracteriza a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira como patrimônio cultural do país, a ser protegido pelo Poder Público e pela comunidade [8]. O que se tem, em suma, é o dever de preservação daquilo que a sociedade venha a convencionar ao longo do tempo como memória coletiva, incluindo nesse rol as obras artísticas.

Para o ordenamento jurídico brasileiro, caso a situação se desse no nosso país, a demanda do público geral bem como do National Film Registry (fundado pelo congresso americano) pela preservação de versão original do filme Star Wars (1977) representaria um reflexo do dever conjunto do Poder Público e da comunidade pela preservação de patrimônio cultural.

Não obstante, a Lei 9.610/98, que regula os direitos autorais no Brasil, garante ao autor o direito moral de modificar sua obra, antes ou depois de sua utilização [9]. Não há no dispositivo qualquer previsão que limite tal direito, independentemente da relevância que a obra em sua forma original possa ter para a sociedade, tampouco imposição de que a versão original esteja também disponível em caso de mudanças.

No mesmo sentido, a lei garante também como direito moral do autor assegurar a integridade de sua obra, opondo-se a modificações [10]. De modo particularmente contra-intuitivo, mas coerente com o que dispõe a lei de direitos autorais no Brasil, o diretor George Lucas poderia, após modificar sua obra ostensivamente, se opor a quaisquer esforços pela sua “desmodificação” (sic) como modo de preservação de versão anterior.

 

O DIREITO DE AUTOR E OS DIREITOS CULTURAIS

O reconhecimento de direitos culturais no âmbito internacional se dá, em grande parte, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Em comparação, os direitos autorais já possuíam previsão no século XIX. Além dessa distância temporal entre os institutos, também é digno de nota que a própria noção do que venha a ser “cultura” passa por constante revisão, sendo volátil e sujeita a peculiaridades de país para país [11]. 

No Brasil, a Constituição de 1988 se mostra como marco no tratamento dado aos direitos culturais, ao ressaltar em seu conteúdo a responsabilidade do Estado na garantia do direito à cultura. Não obstante, inclui normas infraconstitucionais e tribunais como incubidos de especificar quais seriam as ações práticas para efetivar tal garantia [12]. Se considerarmos, por outro lado, as previsões claras e específicas quanto aos direitos do autor, é notável a diferença entre as tutelas.

Isto posto, é possível perceber o conflito relativamente desproporcional entre o direito de autor e os chamados direitos culturais. O professor José de Oliveira Ascensão caracteriza esse choque como um freio que o direito de autor impõe à expansão oportunizada pela informática como meio de acessibilidade universal a conteúdos culturais [13]. Haveria, contudo, limites possíveis a esse “freio”.

 

A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE AUTOR

Tratando-se de um dos tipos de propriedade intelectual, o direito de autor poderia estar sujeito à aplicação de função social. Apesar de não haver previsão constitucional expressa para tanto, cabe compreender a função social do direito de autor como uma forma de realização do direito à cultura, presente no artigo 215 da nossa lei maior [14]. Deste modo, o uso considerado abusivo do direito de autor seria coibido em prol de um desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico dos povos [15].

No caso do acesso a obras como a versão originalmente exibida de Star Wars (1977), o que se pede em última análise não é a desconsideração do direito patrimonial do autor em relação ao filme, tornando seu conteúdo equiparável a domínio público, mas tão somente o acesso (devidamente remunerado) a cópias que reflitam todas as contribuições trazidas pela obra à memória coletiva, para quaisquer formas de fruição.

O próprio diretor, George Lucas, em sessão do congresso americano sobre a importância cultural da preservação de obras cinematográficas, argumentou que a coletividade possui direito à sua herança cultural, compreendida nesse contexto específico como a versão original de determinados filmes.

 

“As pessoas que alteram ou destroem obras de arte e nossa herança cultural por lucro ou como um exercício de poder são bárbaras, e se as leis dos Estados Unidos continuarem a permitir esse comportamento, a história certamente irá nos classificar como uma sociedade bárbara (…) Os detentores dos copyrights, até o momento, não foram diligentes em preservar os negativos originais dos filmes que controlam”. [16]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O CASO

Estritamente sob a ótica do direito de autor, mais especificamente quanto à modificação, não há qualquer excesso nas condutas praticadas pelo autor ao impedir que a primeira versão de seu mais famoso filme se torne acessível novamente. Sob o ponto de vista do direito cultural, contudo, é no mínimo lastimável que uma das obras audiovisuais mais influentes da cultura pop do século XX, cuja relevância ainda se percebe na contemporaneidade, esteja fora do alcance do público, em razão de décadas de modificação constante.

A situação colocada, em grande medida, é comparável ao clássico paradoxo do navio de Teseu, no qual o esforço de “preservação” de uma embarcação, ao substituir suas tábuas de madeira na medida em que se desgastam com o tempo, coloca em questão se o objeto preservado ainda é o mesmo ou findou por se tornar outro no processo [17]. O que se tem ao fim e ao cabo, no entanto, não é nem mesmo um esforço de preservação, mas uma tentativa de apagar da história a existência de um dos maiores divisores de águas do audiovisual contemporâneo em razão de gostos individuais do autor, ignorando a relevância técnica e cultural que a obra adquiriu ainda em sua versão original e, com isso, impedindo o regular exercício de sua função social. Parafraseando o próprio autor: uma barbárie.

 

Referências

[1] Disponível em: https://www.oscars.org/oscars/ceremonies/1978. Acesso em: 18 de maio de 2022

[2] Até a primeira metade dos anos 70, os meses de verão nos Estados Unidos eram considerados de menor bilheteria. Isso viria a mudar significativamente com o lançamento do filme Jaws (lançado no Brasil como Tubarão) e de Star Wars, dois anos depois. Disponível em: https://time.com/5776406/blockbuster-meaning/. Acesso em 18 de maio de 2022.

[3] Disponível em: https://www.today.com/id/wbna6011380. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[4] Disponível em: https://empireonline.com/movies/features/star-wars-changes/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[5] Disponível em: https://www.looper.com/211938/why-watching-the-best-version-of -star-wars-is-actually-illegal/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[6] Disponível em: https://www.theatlantic.com/technology/archive/2014/08/the-star- wars-george-lucas-doesnt-want-you-to-see/379184/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[7] LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. p. 29.  Disponível em: https://www.ufrb.edu.br/ppgcom/images/Hist%C3%B3ria-e-Mem %C3%B3ria.pdf. Acesso em 18 de maio de 2022.

[8] Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (…)

  • 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

[9] Art. 24. São direitos morais do autor:

(…)

 V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

[10] Art. 24. São direitos morais do autor:

(…)

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

[11] FREITAS, Bruna Castanheira de; SANTOS, Nivaldo dos. O conflito constitucional existente entre o Direito de Autor, Direito Cultural e acesso à informação. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 23, n. 2, p. 123-133, jun. 2013. Trimestral. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1667 4/O%20Conflito%20Constitucional%20Existente%20entre%20o%20Direito%20de%20Autor%2C%20Direito%20Cultural%20e%20Acesso%20%C3%A0%20Informa%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 24 de maio de 2022.

[12] idem.

[13] ASCENSÃO, J. Oliveira. Direito da Sociedade da Informação. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 22.

[14] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

[15] CARBONI, Guilherme. Aspectos da teoria da função social do direito de autor. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca (Org.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 32.

[16] Disponível em: https://www.slashfilm.com/517352/george-lucas-speaks-altering -films-1988/. Tradução livre. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[17] Disponível em:  https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-o-paradoxo

-do-navio-de-teseu/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

Enviar Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *