O ARTIGO 14 DA DIRETIVA (UE) 2019/790 E A PROTEÇÃO DO DOMÍNIO PÚBLICO

Lígia Loregian Penkal

Graduanda em Direito (PUCPR) e Design Gráfico (UTFPR). Pesquisadora do GEDAI/UFPR e do Núcleo de Estudos Avançados em Direito Internacional e Desenvolvimento Sustentável NEADI/PUCPR.

[email protected]

 

Marcelle Cortiano

Mestranda em Direitos Humanos e Democracia (UFPR). Bacharela em Direito (UFPR) e em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UFPR). Pesquisadora do GEDAI/UFPR e da Clínica de Direito e Arte da UFPR. Advogada. [email protected].

 

No contexto da sociedade informacional, o fluxo comunicacional nas redes interativas suscita reflexões permanentes a respeito do desempenho dos direitos individuais e coletivos em face das possibilidades de circulação e distribuição de conteúdo no ambiente digital. Afinal, apesar de sua inquestionável posição preferencial nos ordenamentos jurídicos dos modelos democráticos, o adequado exercício dessas prerrogativas está submetido às circunstâncias socioculturais que promovem ou inibem determinadas condutas nas estruturas sociais.

À primeira vista, a supressão das barreiras geográficas impulsionada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) – em especial a Internet – pode conduzir a inferências precipitadas a respeito do alcance do aparato tecnológico e da democratização do acesso à informação. Na prática, porém, a plena inclusão digital encontra obstáculos financeiros, sociais, culturais e de infraestrutura, exigindo progressivamente a adoção de instrumentos funcionais, seja no plano regulatório ou no plano da execução, que tornem realidade as diretrizes inclusivas e democráticas que devem guiar o uso da Internet.

Apesar desses óbices, não há dúvidas de que as TICs se revelam como fortes aliadas na consecução do objetivo de promover o acesso universal à cultura, tanto pela generosa oferta de mídias e experiências quanto pela possibilidade de alcance estendido às audiências mais variadas. Nessa conjuntura, o papel dos mecanismos regulatórios e das políticas públicas é o de fomentar a ampla disseminação de expressões artísticas e culturais, com vistas à realização do interesse público e à promoção do desenvolvimento sociocultural. A tarefa não está imune a desafios, sendo um deles o de compatibilizar o máximo acesso informacional com sistemas já consolidados de prerrogativas originalmente excludentes, erigidos sob a ótica da propriedade individual.

À luz disso, o texto propõe-se a sublinhar as repercussões do artigo 14 da recentemente sancionada Diretiva da União Europeia 2019/790, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital. O dispositivo visa a impedir que reproduções de obras de artes visuais cujo prazo de proteção já expirou – ou seja, que estão em domínio público – sofram a incidência de novos direitos exclusivos, atuando como um mecanismo de proteção do interesse coletivo e do próprio domínio público.

No desenvolvimento, busca-se destacar alguns aspectos notáveis da reforma europeia, com ênfase nas justificativas que culminaram na consagração do teor do artigo 14. Na sequência, discute-se a relevância dos instrumentos de proteção ao domínio público, aventando, por fim, a viabilidade de uma abordagem semelhante à europeia no ordenamento jurídico brasileiro.

 

Direitos de acesso e limitações aos direitos autorais

 

Uma maneira bastante simples de constatar os efeitos das transformações sistêmicas provocadas pela revolução tecnológica é percebendo como os instrumentos regulatórios necessitam ser constantemente revisitados – sendo respeitados critérios de proporcionalidade e razoabilidade, evidentemente – para que passem a atender às demandas sociais da forma mais satisfatória possível. A garantia fundamental de acesso à cultura, por exemplo, está profunda e diretamente vinculada às oportunidades oferecidas pelas novas TICs, sendo a Internet a mais relevante delas. Nesse sentido, avaliar seu desempenho nesse cenário passa pela necessidade de proceder a uma leitura crítica dos regramentos a ela relacionados, pautada pela imperiosa observância dos princípios da universalização do conhecimento e da democratização da informação.

À medida em que o panorama estruturado pelas TICs proporcionou um ambiente favorável para a proliferação de manifestações culturais das mais variadas fontes, originou também uma atmosfera de instabilidade e incertezas no que tange à titularidade e à reprodução desses conteúdos. Logo, emergiram ponderações a respeito da extensão e da adequação dos sistemas de proteção dos bens intelectuais no ciberespaço – que, por ora, extrapolam o objetivo da presente abordagem. Não obstante, cumpre destacar que, como qualquer outra garantia, o direito autoral e os direitos de reprodução não se tratam de prerrogativas absolutas, e não estão imunes aos interesses coletivos da sociedade e às funções sociais da arte e da cultura. Por essa razão, é bastante comum que haja nos ordenamentos jurídicos a previsão de exceções e limitações aos privilégios autorais exclusivos, para que não se tornem abusivos em face de outras garantias igualmente importantes, como os direitos fundamentais de acesso.

No tocante à reprodução e distribuição de conteúdo, as limitações e exceções são artifícios indispensáveis para promover o equilíbrio entre os interesses públicos e privados. Devem, portanto, ser compreendidas como políticas de desenvolvimento nacional, já que a maior parte da população não tem recursos para pagar pelo acesso à informação [1]. Nesse sentido, os sistemas de proteção de direitos autorais incluem dispositivos bastante consolidados para materializar esta demanda. No Brasil, por exemplo, a Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais – LDA) prevê limitações temporais e materiais aos direitos do titular que, na prática, contribuem para a salutar relativização das prerrogativas autorais quando confrontadas com usos e reproduções que visam a satisfazer a promoção da cultura, da educação e do conhecimento. 

O fundamento por detrás dessas limitações está, de certa forma, incutido na ideia de devolução à sociedade do uso do privilégio concedido ao autor que, ao constituir seu trabalho, retirou dela os elementos para elaborar sua criação. Para Beatriz Ribeiro de Moraes, esta democratização do acesso aos bens culturais configura um círculo de direitos que é retroalimentado de maneira contínua [2]. Este raciocínio permite inferir que as criações do intelecto humano, incluindo as expressões artísticas, restam submetidas a uma função social que deve compatibilizar as garantias do autor com as demandas da coletividade, em esforços instrumentalizados pelas limitações e exceções. Adicionalmente – e é aqui que esta reflexão pretende se aprofundar –, esses mecanismos auxiliam também na proteção ao domínio público, impedindo que novos direitos de exclusividade incidam sobre reproduções de manifestações artísticas cujo monopólio intelectual já expirou.

 

Os destaques da Diretiva (UE) 2019/790 

 

Como adiantado, na União Europeia essa vedação foi enfim formalizada com a reestruturação das regras de direitos autorais levada a cabo em 2019. A medida, publicada em abril daquele ano, foi fruto de uma reforma que já se desenhava há algum tempo em âmbito continental e que resultou na “Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital” [3]. Em linhas gerais, o instrumento dedicou-se a harmonizar as regras de direitos autorais com o contexto digital vigente, marcado, sobretudo, pela intensa circulação e pelo fluxo transnacional de conteúdo. 

Naturalmente, a reforma não permaneceu imune a críticas, tendo as principais polêmicas gravitado em torno dos artigos 15 e 17. O primeiro estende aos editores de publicações de imprensa – somando-os aos autores, artistas intérpretes, produtores e organismos de radiodifusão já albergados pela legislação anterior – o direito exclusivo de reprodução e comunicação ao público dos conteúdos que produzem. Na época da proposta da reforma, a polêmica ficou por conta da previsão da necessidade de licenciamento e pagamento por menções a trechos de notícias (apelidada de “imposto do link”) mas, no fim, a disposição não foi transportada para a versão final do texto que foi aprovada pelo Parlamento [4]. 

O segundo, bastante controverso, diz respeito à possibilidade de responsabilização de plataformas de veiculação de conteúdo criado por terceiros em casos de violação de direitos autorais, na hipótese do uso não ter sido devidamente autorizado pelo titular destas prerrogativas. Em termos práticos, isso exige das plataformas uma filtragem prévia e um monitoramento contínuo do material postado pelos usuários. Para os criadores de conteúdo, alegadamente, pode significar uma relevante ameaça às liberdades de expressão e criação [5].

Não obstante as críticas a estes dispositivos específicos, outros aspectos da reforma foram amplamente celebrados pela doutrina e pelos setores da sociedade envolvidos com o interesse público e com a distribuição de conteúdo educacional e cultural. Destacam-se, particularmente, as limitações e exceções que buscam colocar em prática os pilares da universalização do conhecimento e da democratização da informação.

O artigo 5º, a título de exemplo, prevê a possibilidade de compartilhamento, por professores e alunos em ambientes de educação formal, de materiais educacionais em atividades pedagógicas e transfronteiriças, desde que observadas dadas condições. O artigo seguinte, a seu turno, estabelece uma exceção para que instituições de memória possam realizar cópias de obras protegidas para fins de preservação, garantindo que bibliotecas, museus e afins reproduzam seus acervos para conservação sem correr o risco de enfrentar restrições procedimentais ou violar garantias autorais. Esses dois breves apontamentos são apenas alguns dos exemplos notáveis que refletem o caráter harmônico que a Diretiva (UE) 2019/790 busca implementar com suas limitações e exceções. 

 

O artigo 14: relevância e desdobramentos

 

Como já referido, em seu artigo 14 a Diretiva formalizou a regra de que a reprodução de obras de artes visuais não pode ser objeto de eventual proteção por novos direitos exclusivos caso o prazo de proteção destes trabalhos já tenha expirado – em outras palavras, caso as obras estejam em domínio público. Na íntegra, o texto dispõe [6]:

 

Artigo 14º – Obras de arte visual no domínio público

Os Estados-Membros devem prever que, depois de expirado o prazo de proteção de uma obra de arte visual, qualquer material resultante de um ato de reprodução dessa obra não esteja sujeito a direitos de autor ou a direitos conexos, salvo se o material resultante desse ato de reprodução seja original, na aceção de que é a criação intelectual do próprio autor.

 

A relevância deste dispositivo pode ser percebida em variadas frentes. De acordo com a Communia (The COMMUNIA International Association On the Digital Public Domain – em tradução livre, a Associação Internacional sobre o Domínio Público Digital), um projeto da Comissão Europeia que reúne representantes multissetoriais e elabora políticas de expansão do domínio público e de ampliação do acesso à cultura [7], este dispositivo é uma das poucas disposições incontestavelmente positivas da nova Diretiva [8]. 

A questão fundamental desta diretriz reside na garantia de que meras reproduções de obras de artes visuais cujo prazo de proteção já tenha expirado não sejam submetidas a novos direitos exclusivos que eventualmente restrinjam sua circulação. Afinal, em última análise, essa nova incidência de direitos de exclusividade acabaria por retirar tais reproduções do domínio público, esvaziando toda a lógica a ele adjacente.

Para as instituições de memória, a previsão representa a formalização de um direito extremamente necessário. Como muitos itens dos acervos dessas entidades estão sob a condição de domínio público, a regra garante que a difusão em meios digitais dessas coleções pode ser feita de maneira ampla e irrestrita, atendendo ao interesse público e ao princípio de democratização do conhecimento e da cultura.

Em contraste, a disposição atua também como um mecanismo de combate a uma reiterada e controversa atividade dessas próprias instituições [9]. Em muitas ocasiões, museus reivindicam direitos exclusivos sobre reproduções digitais de obras em domínio público que estão em seus acervos, fazendo de sua exploração uma fonte de recursos. Ainda que a prática seja adotada sob a justificativa de compensação pelos esforços despendidos com a digitalização [10], é temerária a manutenção de instrumentos que ameacem a integridade da garantia coletiva que o domínio público representa.

Há, nesse mesmo sentido, a questão polêmica das camadas adicionais de direitos [11]. Em alguns casos, a digitalização é executada por fotógrafos ou profissionais da área audiovisual e o resultado dos trabalhos de reprodução digital das obras em domínio público acaba por encerrar graus de originalidade inexistentes nas obras originárias, atendendo a critérios que conferem prerrogativas autorais às criações do intelecto humano – e, portanto, gerando a incidência de novos direitos exclusivos. Nessas hipóteses, evidentemente, não cabe a aplicação do artigo 14, conforme o próprio texto da Diretiva indica.

O impasse ainda carece de encaminhamentos definitivos, uma vez que se sujeita às minúcias dos processos utilizados, às escolhas criativas e variáveis afins [12]. Por sua brevidade, a publicação em tela busca considerar singularmente meras reproduções digitais destinadas a distribuir acervos institucionais a audiências mais amplas, sem adentrar no mérito de sua originalidade. Não obstante, a discussão das camadas adicionais é uma questão que merece registro, inclusive para orientar investigações futuras.

 

Por que proteger o domínio público?

 

Do ponto de vista jurídico, a definição de domínio público refere-se à condição legal adquirida por criações do intelecto humano cujo prazo de monopólio dos direitos autorais expirou e, em razão disso, sua titularidade e a destinação de seu uso tornam-se públicas [13]. Isso significa que qualquer membro do corpo social pode utilizá-la sem necessidade de pedir autorização ou remunerar o autor ou autora, seus herdeiros ou outros titulares de direitos [14].

De acordo com a Convenção de Berna, o prazo mínimo para que uma obra passe a integrar o domínio público corresponde ao tempo de vida do autor acrescido de cinquenta anos, podendo esse prazo ser estendido pelos estados signatários. Muitos deles, como o Brasil e os países da União Europeia, estabeleceram o período de setenta anos contados a partir de 1º de janeiro do ano seguinte ao da morte do autor. Cumpre lembrar que o decurso temporal refere-se aos direitos patrimoniais apenas, uma vez que os direitos morais de autoria são irrenunciáveis e inalienáveis. 

Apesar das disposições da Convenção, algumas exceções variam de um país para outro. Assim, no caso da União Europeia, a formalização representada pelo artigo 14 é essencial para harmonizar a condição legal das reproduções e garantir segurança jurídica em um contexto de intenso fluxo transfronteiriço de conteúdo. Afinal, assegura aos membros da comunidade a possibilidade de fruir das reproduções de obras de artes visuais em domínio público sem que se exponham ao risco de infringir direitos exclusivos porventura desconhecidos ou de difícil identificação.

Na condição de instituições de memória e preservação do patrimônio cultural, os museus devem ter como princípio norteador a difusão de seus acervos a audiências cada vez maiores – seja no meio físico ou no digital. Por isso, é recomendável que suas coleções estejam acessíveis de maneira democrática e universal e, na medida do possível, que o público não enfrente limitações para interagir com este conteúdo, especialmente se ele integrar o domínio público. Como reiterado, as possibilidades oferecidas pela Internet dialogam de maneira profícua com a consecução destes objetivos e contribuem substancialmente para sua realização.

O impedimento de nova incidência de direitos exclusivos à reprodução de obras que, pelo decurso do tempo, pertencem à coletividade é apenas a decorrência lógica do propósito do domínio público, cuja função social vai muito além da constituição de um acervo cultural comum. Segundo o Manifesto do Domínio Público da Communia [15], o conhecimento e a cultura compartilhados – que, juntos, constituem o domínio público – são a base para que as comunidades procedam à autocompreensão. A manutenção de um acervo público próspero é fundamental para que as sociedades possam se desenvolver não apenas social, mas também economicamente, em observância, inclusive, ao artigo 27 (1) da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) [16].

Além de trazer novamente ao centro das discussões a necessidade de fortalecer e assegurar a funcionalidade do domínio público, o artigo 14 da Diretiva (UE) 2019/790 reacende o debate a respeito da realização dos direitos culturais pela inclusão digital. Para Marcelo Miguel Conrado, o potencial democrático das reproduções de obras de arte como instrumentos de acesso à cultura é essencial para que os mais diversos públicos possam se aproximar do fazer artístico e da informação que ele oferece [17]:

 

O mais democrático contato com a arte ocorre pelos livros, catálogos e demais reproduções. São estes os instrumentos pelos quais se ensina a história da arte. São reduzidas as oportunidades para a análise de obras de arte in loco, especialmente por questões geográficas. A maioria das pessoas teve contato, por exemplo, com as mais importantes obras de arte por meio de reproduções.

 

A celebração da disposição contida no artigo 14, portanto, não é em vão. Além de atuar no combate a entidades detentoras de acervos artísticos que reivindicam direitos exclusivos sobre reproduções de obras em domínio público de suas coleções, o dispositivo representa também um mecanismo de impulsionamento do desenvolvimento sociocultural dos estados destinatários e uma ferramenta de democratização cultural e acesso informacional. Adicionalmente, inaugura uma tendência de esforços direcionados ao enriquecimento do patrimônio cultural continental, já que é a primeira vez que uma Diretiva da União Europeia se presta a proteger o domínio público [18].

A Communia reitera a importância da medida como uma “vitória substancial para o domínio público na Europa” [19], mas seus efeitos vão além. Não se pode deixar de registrar que a sanção da regra simboliza um importante passo para a retomada dessa discussão em âmbito internacional, podendo atuar, inclusive, como uma referência de êxito para a condução de propostas de reformas de leis autorais, incluindo a brasileira.

 

Considerações finais

 

Como se reforçou na introdução deste relato, ao passo em que proporcionou numerosas possibilidades de comunicação e interação, a revolução tecnológica também complexificou os desafios enfrentados pelo direito no tocante à compatibilização dos interesses muitas vezes diametralmente opostos de grupos sociais heterogêneos. A isso, soma-se ainda o permanente obstáculo da desigualdade informacional, que não foi necessariamente mitigado pelos mecanismos da era do acesso, a despeito do que diagnosticaram as manifestações mais otimistas. 

Nesse cenário, a sanção de instrumentos regulatórios que fortaleçam a promoção do acesso à cultura e a democratização da informação deve ser celebrada, ainda que apenas formalize um posicionamento que já deveria estar arraigado na estrutura social. Além disso, a observação das tendências europeias é fundamental para estruturar o debate em âmbito nacional de maneira adequada, conforme salienta Mariana Valente [20]. Naturalmente, considerar os usos livres oportunizados pelas limitações e exceções aos direitos autorais é central para deliberar sobre uma reforma inclusiva, especialmente no contexto da circulação de conteúdo digital na sociedade informacional.

Nesse sentido, é oportuno destacar as iniciativas do capítulo brasileiro do Creative Commons (CC), a organização não-governamental internacional sem fins lucrativos que se tornou um importante meio de cooperação no mundo digital ao impulsionar o acesso à cultura, à educação e à ampla disseminação de conhecimento e da criatividade [21]. Um de seus instrumentos mais notáveis, as licenças CC – que em geral são públicas, respeitadas as condições estabelecidas –, vêm sendo amplamente utilizadas como política institucional em diversas universidades, órgãos públicos, centros de pesquisa, museus, arquivos e bibliotecas [22]. O licenciamento de conteúdo em CC permite a essas instituições o compartilhamento de suas produções e acervos com maior eficiência e impacto social, assegurando a divulgação do conhecimento, a promoção da cultura e o incentivo às artes e à criatividade [23]. 

Ainda, no que se refere à consulta pública para a reforma da LDA, o projeto defendido pelo Creative Commons estabelece que a regulamentação passe a prever expressamente a possibilidade de cópias de acervos artísticos para fins de preservação sem a autorização do autor, em diálogo direto com a própria reforma europeia. O principal objetivo deste posicionamento é adequar a legislação brasileira às demandas contemporâneas, que exigem instrumentos que proporcionem o equilíbrio entre as novas tecnologias, a justa proteção dos autores e o desenvolvimento sociocultural, de modo a fomentar a educação, a cultura e os novos modelos de negócio indispensáveis a uma realidade cada vez mais conectada e colaborativa.

À primeira vista, a medida detalhada no texto pode parecer uma obviedade, ao determinar que reproduções de obras que estão em domínio público em sua versão analógica permaneçam sob a mesma condição na versão digital. A análise mais aprofundada do tema, porém, revelou que a diretriz formalizada pelo artigo 14 era uma necessidade premente para promover a harmonização da questão entre os Estados-Membros da União Europeia, em vista da situação de instabilidade jurídica agravada pelo intenso fluxo transfronteiriço de informações. Além disso, o mecanismo mostrou-se um marco importantíssimo na garantia funcional do domínio público, viabilizando o desenvolvimento sociocultural e econômico das comunidades destinatárias e, ainda, materializando o imprescindível direito de acesso à cultura.

 

Notas

 

[1] MIZUKAMI, Pedro Nicoletti; LEMOS, Ronaldo; MAGRANI, Bruno; SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Exceptions and limitations to copyright in Brazil: a call for reform. In: SHAVER, Lea (Ed.). Access to knowledge in Brazil: new research on intellectual property, innovation and development. p. 67-114. New Haven: Yale Law School, 2008. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/area/center/isp/documents/a2kbrazil_bkmk.pdf. Acesso em: 25 mar. 2021.

 

[2] MORAES, Beatriz Ribeiro de. Direitos autorais nas obras de artes plásticas: livre reprodução para preservação e divulgação de acervo. In: FREITAS, Bruna Castanheira de; VALENTE, Mariana Giorgetti (Org.). Memórias digitais: o estado da digitalização de acervos no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.

 

[3] EUR-LEX. Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0790&from=EN. Acesso em 27 mar. 2021.

 

[4] FERREIRA, Adrícia Rocha. A nova Diretiva dos direitos de autor no mercado único digital do Parlamento Europeu: críticas, elogios e possíveis impactos. Revista do CEPEJ, Salvador, vol. 22, pp 14-33, jan-jul 2020. 

 

[5] Idem.

 

[6] EUR-LEX. Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0790&from=EN. Acesso em 27 mar. 2021.

 

[7] COMMUNIA. About – International Communia Association. Disponível em: https://www.communia-association.org/about/. Acesso em: 27 mar. 2021.

 

[8] Article 14: Works of visual art in the public domain. Disponível em: https://www.notion.so/Article-14-Works-of-visual-art-in-the-public-domain-eb1d5900a10e4bf4b99d7e91b4649c86. Acesso em 27. mar. 2021.

 

[9] CREATIVE COMMONS BRASIL. Implementando a Diretiva da União Europeia sobre o Direito de Autor: Protegendo o domínio público com o Artigo 14. 22 jul. 2019. Disponível em: https://br.creativecommons.net/2019/07/22/implementando-a-diretiva-de-direitos-autorais-protegendo-o-dominio-publico-com-o-artigo-14/#:~:text=Na%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20do%20artigo%2014,da%20prote%C3%A7%C3%A3o%20dos%20direitos%20conexos. Acesso em: 25 mar. 2021.

 

[10] VALENTE, Mariana Giorgetti. Notas gerais sobre a digitalização de acervos no Brasil. In: FREITAS, Bruna Castanheira de; VALENTE, Mariana Giorgetti (Org.). Memórias digitais: o estado da digitalização de acervos no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.

 

[11] Idem.

 

[12] MARGONI, Thomas. The digitisation of cultural heritage: originality, derivative works and (non) original photographs. Institute for Information Law – University of Amsterdam.  3 dez. 2014. Disponível em: https://eprints.gla.ac.uk/149774/1/149774.pdf. Acesso em 29 mar. 2021.

 

[13] HEIDEL, Evelin. El dominio público: un problema teórico, una propuesta política, una herramienta metodológica. In: FREITAS, Bruna Castanheira de; VALENTE, Mariana Giorgetti (Org.). Memórias digitais: o estado da digitalização de acervos no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.

 

[14] CREATIVE COMMONS BRASIL. Cartilha “O que você precisa saber sobre licenças CC”. 2020. Disponível em: https://br.creativecommons.net/2021/02/02/novacartilhaccbrasil/. Acesso em: 29 mar. 2021.

 

[15] PUBLIC DOMAIN MANIFESTO. The Manifesto ❘ Public Domain Manifesto. Disponível em: https://publicdomainmanifesto.org/manifesto/. Acesso em 30 mar. 2021.

 

[16] O texto dispõe: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.” Fonte: UNITED NATIONS – HUMAN RIGHTS. OHCHR ❘ Office of the High Commissioner. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 29 mar. 2021.

 

[17] CONRADO, Marcelo Miguel. A arte nas armadilhas dos direitos autorais: uma leitura dos conceitos de autoria, obra e originalidade. 322 f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. Disponível em <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32966/R%20-%20T%20-%20MARCELO%20MIGUEL%20CONRADO.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. p. 250. Acesso em 29 mar. 2021.

 

[18] GIANNOPOULOU, Alexandra. The New Copyright Directive: Article 14 or when the Public Domain Enters the New Copyright Directive. Kluwer Copyright Blog, 27 jun. 2019. Disponível em: http://copyrightblog.kluweriplaw.com/2019/06/27/the-new-copyright-directive-article-14-or-when-the-public-domain-enters-the-new-copyright-directive/. Acesso em: 29 mar. 2021.

 

[19] COMMUNIA. Internet is for the People – Public Domain. Disponível em: https://reform.communia-association.org/issue/public-domain/. Acesso em: 29 mar. 2021.

 

[20] VALENTE, Mariana Giorgetti. A reforma europeia da perspectiva das limitações e exceções. Palestra proferida no XIV Congresso de Direito de Autor e Interesse Público (online). Curitiba, 06 nov. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f26ttxQucQY&t=1287s. Acesso em 28 mar. 2021.

 

[21] BRITTO, Walter; BRANCO, Sérgio. O que é Creative Commons? Novos modelos de direito autoral em um mundo mais criativo. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11461/O%20que%20é%20Creative%20Commons.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.

 

[22] CREATIVE COMMONS BRASIL. Cartilha “O que você precisa saber sobre licenças CC”. 2020. Disponível em: https://br.creativecommons.net/2021/02/02/novacartilhaccbrasil/. Acesso em: 30 mar. 2021.

[23] CREATIVE COMMONS BRASIL. Cartilha “CC discute reforma da Lei de Direitos Autorais com museus em SP”. 2019. Disponível em: https://br.creativecommons.net/2019/08/14/cc-discute-reforma-da-lei-de-direitos-autorais-com-museus-em-sp/. Acesso em: 30 mar. 2021.

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