Conversa com Marcelle Cortiano sobre Acervos Artísticos no Ambiente Digital.

Entrevista com  Marcelle Cortiano a autora do livro Acervos Artísticos no Ambiente Digital.

 No XVII Congresso de Direito de Autor e Interesse Público (CODAIP), realizado no último novembro, foi lançada a obra “Acervos artísticos no ambiente digital: a proteção autoral, o acesso à cultura e a função social das instituições artísticas na contemporaneidade”. Abaixo, apresentamos uma breve conversa com a autora Marcelle Cortiano, pesquisadora do GEDAI-UFPR, que nos relata a relevância de discutir a digitalização de acervos artísticos considerando suas repercussões jurídicas e socioculturais.

Fruto da dissertação de mestrado da autora, o livro relaciona direito, arte e tecnologia para identificar e debater as alternativas para a digitalização e disponibilização de obras de arte na Internet, em um contexto de insegurança jurídica para os museus – já que não há previsão legal que sustente essa prática sem eventual violação de direitos de propriedade intelectual – e também em um cenário em que os parâmetros de acesso e compartilhamento cultural são repetidamente reconfigurados, por conta do surgimento e popularização de ferramentas como as licenças abertas e os softwares livres.

Nesta entrevista, a autora resgata as reflexões que antecederam a escolha do objeto de pesquisa, analisa a inserção dessa discussão no cenário pandêmico e pós-pandêmico, e ainda comenta questões que ficaram de fora da publicação final.

GEDAI – Primeiramente, para contextualizar: qual a proposta do livro?

Marcelle Cortiano – O livro aborda a questão da digitalização de acervos artísticos de museus, tanto pela ótica jurídica quanto sociocultural. No primeiro aspecto, o foco é o tratamento da digitalização de obras de arte no ordenamento jurídico, especialmente na Constituição Federal e na Lei de Direitos Autorais (LDA). Nesse diagnóstico, nota-se como não há, hoje, uma previsão específica para que as instituições digitalizem e disponibilizem seus acervos na Internet. Essa insegurança jurídica para os museus brasileiros não apenas obstaculiza o devido acesso à cultura e a fruição das artes – direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU – mas também prejudica a adequada preservação da memória coletiva e a transmissão do patrimônio cultural. Isso é especialmente temerário nas hipóteses de os acervos estarem em condições precárias de manutenção, como é o caso de muitas coleções no país.

Logicamente, a questão deve ser também observada à luz das regras de propriedade intelectual, para que não sejam violadas as garantias dos autores e criadores sobre suas obras de arte. Mas o que se percebe, com destaque para o caso brasileiro, é que a ausência de previsão legal que assegure a prática da digitalização para fins de preservação e difusão cultural faz com que os museus se sintam desestimulados a colocarem seus acervos na Internet. Além disso, há um consenso doutrinário de que o regime de proteção autoral não dialoga com a realidade da sociedade informacional, já que as regras foram projetadas em um contexto anterior à popularização da Internet. Em última análise, compromete-se a preservação dos itens e a própria circulação de bens culturais, desperdiçando a oportunidade de aproveitar o potencial das ferramentas tecnológicas em prol do interesse público.

Há muitos outros fatores envolvidos na dinâmica de digitalizar e disponibilizar acervos na Internet, e é por isso que a consideração dos aspectos socioculturais é indispensável. A prática de atividades culturais pelos brasileiros, os desafios para a inclusão digital no país e os riscos aos quais o patrimônio cultural está suscetível são alguns dos elementos a serem lidos em conjunto quando se fala em acervos artísticos na rede. Também é interessante levar em conta as tendências que se desenham no cenário global e as experiências favoráveis ou malsucedidas de outros países.

Em síntese, então, a proposta do livro é identificar as alternativas para a ampliação da digitalização e disponibilização de acervos artísticos brasileiros na Internet, discutindo as repercussões jurídicas e socioculturais dessa prática. Para isso, apoia-se em bases doutrinárias internacionais e nacionais, consulta normativa e nos dados coletados pelo Cetic.br, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.

GEDAI – Como foi a definição desse assunto para a pesquisa?

MC – O CODAIP sempre foi um ótimo espaço para enxergar as temáticas jurídicas a partir de uma perspectiva multidisciplinar, por abordar a propriedade intelectual em suas mais variadas relações: com as artes, com a tecnologia, com a cultura, etc. Visualizar a experiência dos acervos de museus pela ótica do regime autoral é uma das possibilidades dessa profusão de debates.

A vontade de pesquisar mais a fundo a questão específica da digitalização de acervos brasileiros veio especialmente da percepção de uma fragilidade jurídica a que instituições como bibliotecas, arquivos e museus estão submetidas, sobretudo quando querem digitalizar seus acervos sob o modelo atual de proteção autoral. Durante a pandemia de COVID-19, isso ficou ainda mais evidente, porque nesse momento se exigiu que as atividades culturais acontecessem totalmente no ambiente digital, e notou-se com mais clareza os obstáculos enfrentados pelas instituições para fazerem isso. O descompasso da lei autoral é apenas um desses entraves, mas é central porque envolve e se relaciona com todos os demais.

Pode-se argumentar que há certas previsões legais e constitucionais que tornariam a atividade legítima, mas a leitura atenta demonstra como são disposições muito imprecisas e pouco aplicáveis na prática. A insegurança jurídica para as instituições permanece e, por conta desse descompasso, compromete-se toda uma cadeia de produção cultural, impactando diretamente no exercício de direitos fundamentais e no alcance do interesse público, um dos pilares do Congresso – e também da pesquisa. Portanto, após todo o desenvolvimento e publicação do trabalho, a escolha de lançar o livro no CODAIP foi intencional, pelas reflexões terem sido gradativamente amadurecidas no evento e serem uma continuidade e um aprofundamento do que é debatido lá.

GEDAI – Já que você mencionou a pandemia, como essa discussão se insere no cenário pandêmico e pós-pandêmico?

MC – É bem interessante essa questão, já que a pandemia reacendeu significativamente o debate das atividades culturais na rede. Mas é fundamental relembrar que a tendência de digitalização de acervos não resulta desse cenário pandêmico, é uma questão que está presente desde a popularização da Internet. E mesmo na proposição da pesquisa, a intenção não foi trazer a pandemia como determinante para a digitalização, embora tenha surgido como uma questão incidental em alguns momentos.

Como detalhado no texto, desde muito antes de 2020 as instituições já se preocupavam em digitalizar suas coleções, seja para preservação, seja para difusão cultural. Há numerosos casos de êxito, mas na experiência brasileira os obstáculos tendem a ter um destaque maior – e o obstáculo da legislação é recorrente. Apesar disso, sem dúvidas a pandemia acelerou muitos processos de transposição de coleções do substrato físico para o virtual, porque as instituições tiveram que reinventar seus processos rapidamente. Durante o isolamento social, a oferta de atividades culturais na rede aumentou significativamente, mas isso escancarou outra face do problema: o abismo informacional decorrente da exclusão digital. Os dados do Cetic.br detalham isso muito bem, atestando como as atividades culturais na rede ainda ficam restritas a uma parcela limitada da população, tanto antes quanto durante a pandemia.

Por outro lado, o legado que fica agora no “pós-pandemia” é de certo otimismo em relação à absorção desses processos pelas instituições: constatou-se a importância de digitalizar os itens de acervo, seja para perpetuar a memória coletiva, seja para mitigar as barreiras que inviabilizam o acesso às artes, seja para evitar a deterioração. Assim, os museus devem passar a priorizar essa prática em seus planos institucionais, pois mesmo que seja um processo trabalhoso, é muito benéfico para a manutenção do acervo e para a difusão cultural. É oportuno destacar que isso não significa o fim da proteção autoral dos artistas visuais ou sequer uma mitigação dessas garantias, porque a disponibilização das obras digitalizadas pode se dar por licenças abertas, sempre em observância às regras existentes. De todo modo, insiste-se na necessidade de que o regramento atual seja revisitado, já que não dialoga com as demandas sociais e não atende adequadamente ao interesse público, conforme a pesquisa demonstrou.

Em suma, o cenário ideal é de coexistência dessas duas propostas, de forma que acervo físico e digital se complementem para otimizar a experiência do público. É essencial reiterar isso, pois pode haver um receio de extinção ou substituição das exposições físicas pelas virtuais, e o livro reforça como essa abordagem é equivocada. Defende-se que ambos os modelos sejam mantidos e dialoguem entre si, para que possam oferecer à sociedade a participação na vida cultural e a fruição das artes dentro de suas peculiaridades e potencialidades. Em 2020, inclusive, uma pesquisa divulgada pelo o ICOM Brasil (Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus) revelou a avaliação do público sobre o futuro do museu, classificando-o como “acessível”, “aberto”, “interativo”, “inclusivo” e “digital”. A percepção das próprias audiências, então, também converge nesse sentido.

GEDAI – A que leitores o livro se destina?

MC – Por ter se originado a partir de uma dissertação de mestrado, o texto foi inicialmente elaborado para instruir pesquisadores e profissionais das áreas cultural e museológica, trazendo referências normativas e doutrinárias que constituem uma curadoria que pode ser bastante útil para trabalhos na temática.

Porém, hoje eu diria que se destina também para o público que se interessa pelo tema em geral, já que o texto foi revisado e reestruturado para a publicação final em livro, buscando tornar a leitura mais fluida. O rigor acadêmico permanece na redação, mas de forma mais sutil. O fracionamento dos tópicos em mais capítulos deixa a leitura mais dinâmica, sem prejuízo do conteúdo científico. Além disso, é interessante pontuar que alguns dados foram atualizados desde a redação que foi defendida, para trazer uma versão mais recente do texto.

GEDAI – E por último, há algo que você gostaria de ter abordado no livro, mas ficou de fora?

MC – Como qualquer trabalho acadêmico, as limitações formais exigiram recortes precisos, impossibilitando a abordagem de outras questões. Algo que aparece superficialmente no livro, mas que eu gostaria de explorar melhor é a experiência latino-americana, que certamente renderia ótimas reflexões. Não foi o foco desse trabalho, por isso não foi abordado em profundidade, mas o patrimônio cultural da América Latina é riquíssimo, bem como sua relação com museus e com sua presença pioneira na rede.

Outra questão bastante relevante, que não se encaixa necessariamente no problema de pesquisa, mas está relacionado ao tema dos museus, é o tópico da composição dos acervos, sobretudo os ocidentais. Hoje, há uma percepção mais clara de que essas coleções são fruto de roubos sistemáticos, às custas da memória e do patrimônio cultural de comunidades invadidas e saqueadas. Como defende a pesquisadora Françoise Vergès, é preciso “decolonizar” o museu com a seriedade adequada e começar a pensar em um pós-museu. Se queremos discutir o exercício de direitos, a reflexão passa, necessariamente, pelo reconhecimento de que os próprios museus são permeados por desigualdades estruturais de raça, classe e gênero. É um tópico que me instiga muito, e quem sabe possa ser explorado em uma oportunidade futura.

Para conferir o livro lançado no XVII CODAIP, clique aqui. [link: https://bit.ly/acervosartisticos] Também disponível na opção ebook. [link: http://bit.ly/40rdYyO]

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