Entrevista com Alice Perdigão Lana

Apresentamos esta entrevista com Alice de Perdigão Lana, pesquisadora do GEDAI/UFPR e autora do livro “Nudez na internet: mulheres, corpo e direito” publicado pela editora IODA. A obra lança luz sobre um tema complexo e urgentemente relevante – a disseminação não consensual de imagens íntimas. Em um mundo digital em constante mudança, questões de privacidade, consentimento, corpo e gênero se entrelaçam de maneira profunda e muitas vezes alarmante.

Nesta conversa, teremos o privilégio de ouvir a perspectiva da autora, cuja obra se propõe a desvendar os aspectos multifacetados desse problema, explorando desde a inadequação da expressão “revenge porn” até a importância vital de reconhecer a dimensão de gênero nesse contexto. Além disso, descobriremos qual é a mensagem central que a autora busca transmitir através de suas palavras, teremos acesso a um breve sobrevoo da obra e saberemos o que deixou de entrar na publicação final.

Antes de falarmos do livro, gostaria de fazer uma pergunta introdutória: qual o problema da expressão “revenge porn”? 

 

Autora: Olá! Agradeço a oportunidade de discutirmos esse importante assunto. 

 

O termo “revenge porn”, ou “pornografia de revanche/de vingança”, como se popularizou no Brasil, não define bem o problema. Primeiro, porque é conceitualmente impreciso; segundo, porque traz uma carga moral.

 

Ela é imprecisa porque nem sempre trata–se de pornografia, ou mesmo de vingança. Uma foto de bíquini em poses sensuais, por exemplo, não é necessariamente pornografia, mas é uma imagem íntima e é compreensível que a pessoa ali retratada não queira essa imagem circulando na internet. Outro problema do foco na pornografia é o risco de ofuscar a questão principal: trata–se de um ato de violência, não uma mera imagem pornográfica.

 

A expressão também é enganosa e moralmente carregada no uso do termo “vingança” ou “revanche”, porque insinua que a violência praticada – a disseminação de imagens íntimas sem o consentimento da pessoa exposta – é uma retaliação. Pressupõe que alguma ação da mulher, previamente, motivou a divulgação de suas imagens íntimas – o que não só não justifica o ato em qualquer grau, mas também muitas vezes não ocorre.

 

Para citar as pesquisadoras Natália Néris e Mariana Valente, “pornografia de vingança” define mal o problema, pois confunde, com pornografia; e erra, com vingança.

 

Qual a alternativa ao uso dessa expressão?

 

Autora: A alternativa mais apropriada é “disseminação não consensual de imagens íntimas”, que pode ser abreviada para a sigla NCII (que também se alinha ao termo usado na literatura anglófona, non–consensual intimate images). Essa terminologia retrata de forma mais abrangente o ato de compartilhar, sem consentimento da pessoa retratada, imagens íntimas. Além disso, ela deixa claro que não importa se a imagem íntima foi tirada pela vítima ou por outra pessoa; se a gravação foi consentida ou não; ou qual a motivação por trás da divulgação. Se conteúdo íntimo foi divulgado sem consentimento, trata–se de NCII.

 

Entretanto, é inegável que parte significativa da discussão se concentra em torno desses nomes ou conceitos mais populares – como ocorre na mídia. Seria contraproducente ignorar a existência desses termos. Por isso, considero que às vezes é útil usar “revenge porn” e aproveitar a oportunidade para explicitar seus problemas.

 

Entrando na conversa sobre o livro: qual a mensagem da obra?

 

Autora: Gosto da ideia de começar a conversarmos sobre a obra a partir da mensagem dela, porque inverte o sentido – posso começar trazendo pra vocês algumas das minhas conclusões.

 

Um dos meus objetivos com esse livro, que é fruto da minha pesquisa de dissertação, é bater na tecla de que a disseminação não consensual de imagens íntimas é um problema eminentemente de violência contra corpos de mulheres. É antes de tudo uma faceta da violência de gênero. 

 

No livro, critico o fato dessa violência, que ocorre primariamente na internet – campo fluido e de difícil regulação –, ser passível de ser enquadrada pelo Direito Civil abstratamente como uma violação de direitos da personalidade, como direito à imagem, direito à privacidade ou direito à proteção de dados pessoais.

 

Isso, é claro, fala de uma insuficiência mais profunda do discurso jurídico, que precisa traduzir coisas intraduzíveis, como a honra, para o mundo do direito. O fato é que o direito tem muita dificuldade em tratar o corpo como corpo – especialmente os corpos que se afastam do ideal abstrato de sujeito de direito, que sempre foi o corpo do homem branco europeu e proprietário de terras. Existem lacunas que não são solucionadas por melhores arranjos legais, então busco aventar hipóteses que possam trazer uma nova compreensão para o problema da NCII. Não pretendo, com isso, afastar as soluções jurídicas, mas sim apontar para horizontes em que elas não sejam as únicas respostas possíveis.

 

Eu tento, ao fim e ao cabo, demonstrar que o problema não é a exposição em si, mas sim os efeitos sociais praticamente exclusivos às mulheres que ocorrem a partir dela. A discussão a respeito do NCII não pode se esgotar no prisma jurídico. Trata-se, em realidade, de uma questão sociocultural e política. Tratar a NCII como violência de gênero, e não como mera ocorrência na internet que afeta a privacidade das vítimas, é uma mudança de chave nesse sentido.

 

Por que falar de gênero quando falamos de disseminação não consensual de imagens íntimas?

 

Autora: Ao falar de NCII, é preciso falar sobre gênero. Uma analogia que faço com frequência é: falar de disseminação não consensual de imagens íntimas sem falar de mulheres é como falar de fome sem falar de pobreza.

 

Dados mostram que as mulheres são numericamente as mais afetadas pela NCII. De acordo com pesquisas que referencio no livro, até 90% das vítimas de disseminação não consensual de imagens íntimas (NCII) são mulheres. No Brasil, conforme dados disponibilizados pela SaferNet, atualizados de 2012 a 2019, aproximadamente três vezes mais mulheres que homens recorreram à entidade para buscar ajuda em casos de exposição íntima.

 

Destaco, ainda, que a discrepância no impacto não é meramente numérica: as consequências sociais também são menos prejudiciais quando há disseminação não consensual de imagens íntimas de homens. Logo, é necessário compreender a NCII no que diz respeito às mulheres atingidas.

 

Você pode nos fazer um sobrevoo da obra?

 

Autora: Claro! No primeiro capítulo, construo as bases do livro e apresento minhas categorias de análise. Tomo o corpo (quase sempre encoberto pelo direito, ou reconhecido apenas como um dado orgânico e submetido à autonomia e à razão) como elemento central, a partir do qual problematizo a ideia de sujeito de direito, gênero, internet e identidades binárias. Também me alinho a uma perspectiva crítica ao formato colonialista de ler o mundo.

 

No segundo capítulo, apresento as molduras conceituais do tratamento jurídico dado à NCII pelo Direito Civil. A partir de uma análise do surgimento histórico dos direitos da personalidade, encaro as nuances do direito à imagem, à privacidade, e da proteção de dados pessoais nesse tema. Neste capítulo, problematizo a solução do consentimento. Escolhi esse enfoque justamente porque o consentimento é mobilizado por movimentos feministas e também em diversos momentos da regulação da NCII. Todavia, será a chave do consentimento realmente adequada para lidar com essas questões?

 

No terceiro capítulo, analiso as respostas ao problema apresentadas pelo direito brasileiro, incluindo decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, bem como as soluções jurídicas de 26 outros países. Além disso, apresento outros caminhos, dentro e fora do poder estatal, que se delinearam nos últimos anos no combate à NCII, como o tratamento da questão pela chave da moderação de conteúdo, ou a busca por soluções tecnológicas.

 

A quem se destina o livro?

 

Autora: Escrevi esse livro pensando especialmente em profissionais da área jurídica, mas acredito que ele pode ser útil para pessoas do campo da tecnologia, ativistas de direitos humanos, e quaisquer pessoas que tenham interesse em compreender um pouco mais sobre a disseminação não consensual de imagens íntimas e os limites de seu enquadramento jurídico. 

 

Por fim: o que você gostaria de ter tratado na obra mas não está lá?

 

Autora: Essa é uma ótima pergunta. Na conclusão, tento dar um passo mais ousado, mas que não pude desenvolver com tanto afinco, e que dialoga com uma preocupação minha: ao falarmos de mulheres e internet, quase sempre acabamos falando de violência. Não podemos olhar para a internet apenas como um espaço de violência para mulheres. É igualmente importante falarmos da internet também como um campo de avanços, resistências, liberdades e novas explorações, inclusive quando falamos do exercício da própria sexualidade.

 

A existência de imagens íntimas na internet, portanto, não precisa ser prejudicial – desde que seja por vontade da pessoa. Por isso, com frequência, dou oficinas e palestras sobre como “enviar nudes” de forma segura. Isso também pode ser uma prática de resistência prazerosa, um jeito de agir e se posicionar. O ato de se apropriar do próprio corpo – especialmente para pessoas que divergem do padrão – e se sentir passível de amor, desejo e admiração, tem um incrível potencial subversivo. 

 

Esperamos que esta entrevista tenha ampliado sua compreensão sobre a disseminação não consensual de imagens íntimas. Obrigada por nos acompanhar!

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