Obras geradas por Inteligência Artificial e a questão da tutela jurídica da Autoria e criatividade.

Eduarda Silva Arcaro – Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e pesquisadora do GEDAI

 O sistema de proteção da propriedade intelectual e os desafios ocasionados pela inteligência artificial na esfera da autoria e criatividade, foi o tema abordado no trabalho escrito por Eduarda Arcaro com a orientação do Prof. Marcos Wachowicz, desenvolvido como trabalho de conclusão do curso de direito na Universidade Federal do Paraná, buscou analisar as implicações causadas pelo constante avanço da inteligência artificial (IA) no âmbito da propriedade intelectual.

Partiu-se da ideia de que a inteligência artificial, identificada a partir de máquinas/sistemas que executam tarefas tendo como inspiração a inteligência humana, já são capazes de produzir uma série de obras intelectuais – todos trabalhos que, embora possam ser qualificados como uma atividade dentro dos domínios industrial, científico, literário e artístico, não originam-se propriamente do intelecto humano, mas sim de um sistema que o imita.

Assim, o objetivo foi discutir se essas obras poderiam ser consideradas inovadoras e criativas o suficiente e se poderiam ser tuteladas pelos institutos da propriedade intelectual.

Para tanto, buscou-se analisar, primeiro, como teria se dado a construção do atual sistema de proteção intelectual vigente. No artigo, foi possível notar que a propriedade intelectual, compreendida como aquelas modalidades de propriedade que resultam de criações do intelecto humano, surgiu a partir do momento em que a tecnologia passou a permitir a reprodução e comercialização de produtos em série – ocasião que a economia passou a reconhecer, além da propriedade sobre o produto em si, direitos exclusivos que se pautavam na ideia de produção e no que permitia a reprodução deste produto.

 

OS PRIMÓRDIOS DA CRIAÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL DE DIREITO AUTORAL.

A construção do sistema de proteção de Propriedade Intelectual foi algo gradativo, passando por várias fases e diplomas legais. Como resultado de todo este processo, surgiram, ainda no século XIX, convenções internacionais responsáveis por versarem sobre aspectos da propriedade intelectual.

Primeiro, surgiu, em 1883, a Convenção da União de Paris (CUP) para a Proteção da Propriedade Industrial. Três anos depois, em 1886, surgiu a Convenção da União de Berna (CUB) para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas.

Tanto a Convenção de Paris quanto a Convenção de Berna acabaram por serem atualizadas periodicamente, destacando-se, aqui, a revisão feita pela Convenção de Estocolmo em 1967, momento em que se unificou ambas e houve a criação da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI).

Dentro do sistema da propriedade intelectual, o direito autoral protegerá a propriedade literária, científica e artística, visando os interesses do autor e de seus sucessores.

Haverão, ainda, os chamados direitos conexos ao direito autoral, que podem ser exemplificados por interpretações artísticas e execuções, fonogramas e transmissões por radiodifusão. A propriedade industrial, por sua vez, pode ser traduzida, conforme a própria Convenção de Paris, como o conjunto de proteção de direitos sobre as patentes de invenção e de modelo de utilidade, registro de desenho industrial de marcas, bem como na ideia de repressão da concorrência desleal e indicações geográficas.

Além das convenções internacionais, destacou-se que, no Brasil, a propriedade intelectual conta com dois diplomas legais importantes: Lei nº. 9.279 de 1996, responsável por regular direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, e a Lei nº. 9.610 de 1998, que versa sobre os direitos autorais.

A partir disso, observou-se que o sistema de proteção de propriedade intelectual conhecido hoje começou a ser construído sobretudo a partir do século XIX, bem como que muitas das leis atualmente vigentes surgiram em um momento em que questões relacionadas ao avanço da tecnologia de inteligência artificial sequer existiam.

 

AFINAL, O QUE É INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?

Por inteligência artificial, compreende-se aqueles sistemas capazes de imitar a inteligência humana, visando a execução de tarefas, sendo aptos a se aprimorarem sem um ser humano por trás responsável por configurá-los.

A ideia de programar aplicações que poderiam trabalhar sozinhas, sem interferência humana, não é uma coisa recente. Um dos pioneiros desse pensamento foi Alan Turing, que, na década de 1950, por meio de um artigo publicado pela revista Mind, debateu se as máquinas poderiam ser capazes de pensar e solucionar problemas de forma autônoma.

Atualmente, porém, as tecnologias de inteligência artificial se expandiram de tal forma que passaram a ocupar o cotidiano das pessoas, deixando de ser algo exclusivo de uma parcela da população e passando a estar, em muitos casos, disponível a um click na tela do celular. Há uma infinidade de sistemas de inteligência artificial sendo desenvolvidos, cujos resultados, se fossem vistos há alguns anos, pareceriam inimagináveis – e que, em muitos casos, nem sequer foram originalmente previstos pelos seus idealizadores.

Dentre eles, há um crescimento exponencial de IAs capazes de produzir obras intelectuais, como livros, roteiros, pinturas, músicas, patentes, etc, que, se produzidas por um ser humano, facilmente encontrariam proteção no sistema de proteção intelectual vigente. Tal cenário faz com que se comece questionar até que ponto a regulação existente seria compatível com essa nova realidade, bem como quais seriam as possibilidades encontradas.

Assim, questionou-se se essas obras seriam, de fato, inovadoras o suficiente para justificar alguma camada de proteção. Em se tratando de sistemas de inteligência artificial modernos, o que se tem é que há cada vez mais tecnologias aptas a analisar e processar dados de entrada inúmeras vezes antes de chegar a um resultado definitivo, sendo moldadas, desde seu algoritmo, a produzirem resultados inesperados. No atual estágio da tecnologia, pode ser praticamente impossível diferenciar, por exemplo, uma obra de arte produzida por um ser humano daquela produzida por uma IA. Seguindo esta lógica, não haveria, ao menos inicialmente, nada que pudesse impedir uma obra criada por uma inteligência artificial de ser vista como detentora de criatividade.

 

A QUESTÃO JURÍDICA DA CRIATIVIDADE NUMA OBRA GERADA POR APLICATIVOS IA.

A grande problemática é se a criatividade presente em uma obra criada por uma IA poderia ser capaz de justificar a proteção concedida pelos direitos autorais e pela propriedade industrial por si só. Tendo como base o próprio ordenamento jurídico brasileiro, defendeu-se que, para além da criatividade, seria necessário que a obra intelectual também fosse capaz de exprimir traços da personalidade do seu autor – algo que seria impossível para as aplicações de inteligência artificial.

Neste ponto, mencionou-se o art. 7º da Lei nº. 9.610/1998, que define que as obras protegidas pelos direitos autorais seriam “as criações de espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro” (BRASIL, 1998). Ainda que esta ideia de “criação de espírito” seja algo abstrato, é evidente que o legislador indicou a necessidade da obra intelectual ter que nascer justamente do intelecto humano e ter que exprimir, de alguma forma, a individualidade do autor.

Aqui, destaca-se também o art. 11 da mesma lei, que define o autor como sendo “a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica” (BRASIL, 1998). Ainda que o parágrafo único do dispositivo indique que a proteção concedida ao autor é passível de ser aplicada às pessoas jurídicas nos casos previstos na referida lei, o que se tem é, para ser considerado um autor, é necessário que ele seja personalizado – personalidade esta que não é passível de ser exigida de uma IA, que não se enquadra na categoria de personalidade física, nem tampouco na jurídica.

Ao analisar a Lei n°. 9279/1996, por sua vez, que versa sobre os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, defendeu-se que esta também não abriria margem para que invenções criadas por sistemas de IA fossem consideradas titulares dos direitos ali previstos. Por mais que a referida lei não traga uma definição de inventor, observa-se que, ao discorrer sobre o autor da patente, em seu art. 6°, § 2º, diz expressamente que a patente “poderá ser requerida em nome próprio, pelos herdeiros ou sucessores do autor, pelo cessionário ou por quem a lei ou o contrato de trabalho ou de prestação de serviços determinar que pertença a titularidade” (BRASIL, 1996).

Ora, uma vez que um sistema de IA não é considerado pessoa para o direito brasileiro, ele também não encontraria abertura para requerer a titularidade da invenção em seu próprio nome.

A partir dessa análise, verifica-se que, por mais que questões atinentes à titularidade de obras criadas por aplicações de inteligência artificial ainda não tenham chegado oficialmente aos tribunais brasileiros, haveria uma forte tendência de se optar pela não proteção dessas obras pelos institutos da propriedade intelectual no futuro. Isso porque, assim como ocorre na maioria dos países do mundo, todo o arcabouço legislativo encontra-se pautado na ideia do autor como sendo necessariamente um ser humano.

Frise-se que o sistema de proteção da propriedade intelectual vigente, que começou a ser construído sobretudo a partir das Convenções do século XIX, não foi capaz de prever que as inovações tecnológicas seriam tão grandes ao ponto de impactar em questões relacionadas à própria autoria, compreendida, até então, como algo exclusivo do ser humano.

Em razão disso, passou-se a analisar na pesquisa, também as principais correntes da doutrina que procuram solucionar a problemática da titularidade de obras criadas por IA.

 

ANÁLISE DAS TENDENCIAS DOUTRINÁRIAS SOBRE ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA ÁS OBRAS GERADAS POR IA.

Primeiro, abordou-se a corrente que acredita que os direitos sobre as obras deveriam pertencer à própria inteligência artificial. Colocou-se que, na prática, esta corrente não busca enfrentar os problemas trazidos por esse tema, optando pelo caminho mais fácil, na medida em que defende que a titularidade intelectual deve ser destinada a uma máquina. Defendeu-se que, a partir do atual ordenamento jurídico brasileiro, não seria possível falar em uma IA como sendo titular de direitos, na medida em que não há qualquer previsão legislativa capaz de criar uma nova categoria de personalidade para uma inteligência artificial.

Além disso, destacou-se que o próprio sistema de proteção intelectual não parece fornecer substrato apto a permitir que aplicações de inteligência artificial possam ser titulares de direitos dessa natureza, sobretudo pelo fato de todos os seus fundamentos estarem pautados em uma lógica restrita aos humanos.

Após, analisou-se a posição daqueles que defendem que o titular dos direitos intelectuais pertencentes às obras criadas por IA deveriam ser os seus usuários ou os responsáveis por criar essas aplicações.

Desta forma, verificou-se que haveria uma tendência em atribuir a titularidade ao usuário quando houvesse uma maior dependência do resultado gerado com o input humano responsável pela tarefa de desencadear a produção criativa, ao passo que se verificaria uma tendência inversa quando houvesse uma maior autonomia da criação face ao comando dado pelo usuário – hipótese em que se buscaria privilegiar o programador.

A corrente que visa privilegiar o usuário como detentor da titularidade pela obra criada encontra, como um dos seus fundamentos, o fato de que é muito mais fácil responsabilizar este usuário por eventuais danos causados pela IA do que seu desenvolvedor – ainda mais se este usuário tiver um grande controle sobre os valores de entrada. Isso porque, nas hipóteses em que usuário e o programador são pessoas distintas, quem geralmente torna a obra acessível ao público é justamente o usuário, sendo, portanto, mais fácil identificá-lo.

A corrente que defende que a titularidade das obras produzidas por inteligência artificial deveria ficar ao encargo dos desenvolvedores, por sua vez, baseia-se na ideia de que a concessão dos direitos decorrentes da propriedade intelectual sobre as criações cumpriria o papel de incentivar empresas a continuarem investindo no crescimento dessas tecnologias.

A grande questão é que a própria tecnologia já seria protegida, de modo que seus desenvolvedores já teriam condições de conseguir um retorno financeiro por meio dos direitos exclusivos sobre os sistemas e todas as possibilidades de exploração comercial que eles permitem, o que acabaria enfraquecendo esse fundamento.

Assim, pegando como recorte a própria legislação brasileira, argumentou-se que os direitos decorrentes da propriedade intelectual, sobretudo os direitos autorais, orbitam em torno da figura do ser humano, o que já foge da ideia de que máquinas poderiam ser detentoras de direitos intelectuais. Seguindo esta lógica, defendeu-se que talvez o mais adequado fosse colocar as obras produzidas por IA em domínio público.

Para reforçar este argumento, questionou-se se, partindo da ideia de que a propriedade intelectual tem como um dos seus fundamentos reconhecer o esforço criativo dos autores, concedendo privilégios de exploração, em prol de estimular a inovação e originalidade, faria sentido privilegiar uma obra criada por uma máquina em razão de uma criatividade programada, sendo que haveria outros caminhos capazes de recompensar o esforço por trás dos desenvolvedores do sistema.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

A conclusão chegada foi a de que, muitos dos fundamentos basilares do sistema de proteção da propriedade intelectual giram ao redor do ser humano como autor da obra protegida, bem como que, a inteligência artificial, ao ser capaz de gerar obras que, caso fossem criadas por humanos, seriam protegidas, possui o potencial de abalar fortemente as bases deste sistema.

Desse modo, defende-se que, ainda que não se cogite uma completa reestruturação do sistema de propriedade intelectual, haveria a necessidade de se criar uma regulação capaz de estabelecer limites claros acerca das obras criadas por IA.

Destacou-se, contudo, que isso não se mostraria uma tarefa fácil, visto que, para acompanhar o desenvolvimento constante dessas tecnologias, é possível que legislações tenham que ser constantemente alteradas, lógica que é contrária a própria burocracia empregada nos processos legislativos e que pode gerar menos segurança jurídica.

 

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Referências:

ABBOTT, Ryan. Autoria e titularidade da propriedade intelectual na inteligência artificial:

notícias pelo mundo. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, v. 2, n. 3,

  1. Disponível em: https://revista.ioda.org.br/index.php/rrddis/article/view/58 Acesso:

03 nov 23.

 

ARCARO, Eduarda Silva. O Sistema de Proteção da Propriedade Intelectual e os Desafios ocasionados pela Inteligência Artificial na esfera da autoria e criatividade. Disponível em: https://gedai.com.br/wp-content/uploads/2023/12/TCC_Eduarda-Silva-Arcaro.pdf

 

BRASIL. Decreto n°. 78, de 14 de julho de 1967. Aprova o texto da Convenção que institui

a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, assinado em Estocolmo, a 14 de julho de

1967, e da Convenção de Paris Para a Proteção da Propriedade Industrial, revista em

Estocolmo, a 14 de julho de 1967. Diário do Congresso Nacional do Brasil, Brasília, DF, 14

de julho de 1967.

 

BRASIL. Decreto n°. 75.699, de 6 de maio de 1975. Promulga a Convenção de Berna para a

Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886, revista em Paris, a 24 de julho de 1971. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 6 de maio de

1975.

 

WACHOWICZ, Marcos; D’AMICO, Gustavo Fortunato. As performances criadas por

inteligência artificial: o reflexo dos algoritmos na ressurreição digital. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, v. 2 n. 3, 2022. Disponível em: https://revista.ioda.org.br/index.php/rrddis/article/view/23/35  Acesso em: 04 out 2023.

 

WACHOWICZ, Marcos; GONÇALVES, Lukas Reuthes. Inteligência Artificial e Criatividade: novos conceitos na propriedade intelectual. Curitiba: GEDAI. 2019. Disponível em:  https://gedai.com.br/inteligencia-artificial-criatividade-novos-conceitos-na-propriedade-intelectual/ Acesso em: 04 out 2023

 

WALKER, Chris Stokel. ChatGPT listed as author on research papers: many scientists

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Acesso em: 06 nov 2023.

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